Teisho 7
AS DEZ MIL COISAS
NUNCA CHEGAM A EXISTIR.[1]
Autor : Albert Low
Gostaríamos de fazer alguns
comentários sobre os escritos Rinzai[2].
Uma pessoa pergunta a ele: O que é Buda
Mara?
Mara era a divindade que tentou Buda
quando ele estava sentado debaixo da árvore conhecida como Bo ou Bodhi[3].
Buda passou 6 anos fazendo práticas ascéticas e quase morreu. Então, ele
compreendeu que esse não era o caminho. Tomou um pouco de leite que uma mulher
lhe deu e sentou embaixo dessa árvore, a árvore Bo. E foi aí que ele foi
assediado por Mara.
O que é significativo ressaltar é que
cada um de nós, quando finalmente decidimos nos dedicar a nós mesmos durante um
sesshin[4],
somos todos assediados por Mara.
Se você assistiu o filme O pequeno Buda, é uma cena boba, mas
lembre-se, havia uma grande quantidade de flechas, lanças e mísseis que eram
enviados a Buda. E ele estava ali sentado, imperturbável. E mais tarde, as
filhas de Mara[5]
tentaram seduzi-lo.
Essa é uma expressão concreta. Como é
concreto o encontro que Buda teve com o doente, o velho e o morto[6]. É
uma expressão concreta da ansiedade. Essas tentações e pensamentos de Mara são
expressões concretas desses pensamentos, dúvidas e preocupações que vêm até nós
quando estamos meditando.
Temos de estar conscientes que estamos
sendo assediados dessa maneira.
Devemos enxergar que há uma diferença
entre EU PENSO e OS PENSAMENTOS SURGEM. Se estamos meditando e temos dúvidas
sobre a prática espiritual, sobre nossa habilidade em meditar e dúvidas sobre a
iluminação, pode ser que sejam simplesmente DÚVIDAS SURGINDO. Mas, a pessoa pensa: Não sei se essa prática espiritual me convém. Não estou
certa(o) de que posso levar a cabo esse trabalho. Qual o sentido dessa prática, tanta dor… e…
Há uma grande diferença entre isso e
OS PENSAMENTOS SURGINDO. Você deve ver que os pensamentos simplesmente emergem,
se manifestam. O problema real é a sua identificação com esses pensamentos.
Muitas pessoas sentem que suas vidas estão sendo desperdiçadas. Muitas pessoas
têm esses pensamentos lamentosos de que a vida está passando e que eles não
fizeram nada de suas vidas. Não fizeram o que deveriam ter feito ou o que
poderiam ter feito.
Isso acontece obviamente porque a
pessoa tem dois pensamentos acontecendo ao mesmo tempo: um pensamento sobre
como a vida seria idealmente e outro pensamento que é uma memória, uma constatação de como a vida é.
Temos essa imagem idealizada de como a
vida deveria ser. Há o sentimento de que há perfeição e que de alguma maneira
aquilo que estamos vivendo nesse momento não está nem aos pés do que deveria
ser. Quando somos jovens, projetamos esse mundo ideal no futuro. Sentimos que o
mundo ideal não se passa agora, mas ele acontecerá no futuro. Pensamos: quando eu terminar isso ou aquilo; quando eu
conseguir isso ou aquilo; quando eu tiver visto isso ou aquilo.
Temos o sentimento de que no futuro,
há um paraíso. Utopia no futuro. Mundo maravilhoso no futuro.
A medida em que envelhecemos, o futuro
encolhe. A pessoa pode ter um sentimento de ter perdido. Claro, o ideal ainda
está ali, mas não mais pode ser colocado no futuro. E como consequência, o
ideal está presente conosco.
Às vezes esse ideal toma a forma de
expectativas que outros têm sobre nós. Um parente, um pai, uma mãe, um irmão.
Sentimentos que alguém espera algo de nós.
Espera a perfeição de nós. Claro, é dessa idealização que sai a ideia de
paraíso. Não conseguirei ser perfeito nessa vida, mas na próxima vida há o
paraíso. E no paraíso tem todo tipo de gente ideal: anjos, Virgens Marias, etc.
E tudo isso aponta para uma só coisa: o reconhecimento do que é a perfeição.
A perfeição é nossa herança. Somos perfeitos.
Quando as pessoas percebem a perfeição da Virgem Maria, esse anjo azul e
branco… Jesus, Buda… tudo isso são reflexos de nossa própria perfeição.
Tentamos agarrar a perfeição, tentamos obter a perfeição.
Vivemos essas duas dimensões. E
naturalmente, quando medimos nossa vida com essa noção de perfeição, então
nossa vida fica muito aquém. Sentimos que desperdiçamos nossa vida.
Para muitas pessoas, a América do
Norte representa uma espécie de paraíso, a perfeição. Muitas pessoas no mundo
desejam só uma coisa: vir para a América. Isso seria tudo para eles.
Tem uma frase famosa que diz: A América não existe: eu estive lá. Essa
frase deixa-nos entender a mesma ideia. E está imbricada nas mitologias de
todas as culturas do mundo que têm essa perfeição, essa grandeza, essa
maravilha.
Quando as pessoas começam a meditar,
esse é o tempo em que essa clareza, essa luz que elas são começa a brilhar mais
forte. E em contraste, a obscuridade
sobre a qual a pessoa está trabalhando se torna mais feia, mais indesejável.
É aí que as legiões de Mara começam a
aparecer. Costumamos dizer que a única saída daquilo que está nos assediando é
passar através dessa coisa. A única saída do sofrimento é através do
sofrimento. Não podemos fugir. Não podemos descartar o sofrimento. Não podemos
evitá-lo. O ATO DE EVITAR em si mesmo já é sofrimento. É o pior tipo de
sofrimento.
E como consequência, quando esses
tipos de dúvidas e pensamentos emergem, viva-os. Experimente a dor que eles
contém. Conheça-os profundamente. Conheça-os de maneira que você não fique
identificado com eles. Observe-o como um assédio do Mara, e não que EU ESTOU
PENSANDO ISSO OU AQUILO; EU ESTOU REFLETINDO ISSO OU AQUILO; EU ESTOU
DUVIDANDO.
É esse EU. Esse EU é que nos prende ao
sofrimento e estamos estagnados nele.
Abra mão do EU. O sofrimento ainda
está ali, mas não estamos estagnados nele. Podemos passar através dele. Podemos
caminhar através dele. Não queremos dizer que sendo UM com o sofrimento, ele
vai embora. As pessoas me dizem: Tentei
isso e não funcionou.
Não é para funcionar! Não se trata de
uma técnica visando a eliminação do sofrimento. O que é: é uma maneira pela
qual a pessoa para de se identificar com o sofrimento. A pessoa não mais se
identifica com o sofrimento. A pessoa não mais está presa nele de maneira
definitiva.
A pessoa pergunta: O que é Mara?
Rinzai responde: Um pensamento de dúvida em sua mente é Mara.
É interessante o fato de ser uma
expressão concreta. Mara era uma pessoa. E também é uma expressão concreta que
Buda encontrou com o homem doente. Martin Luther atribuía parte da culpa ao
demônio. O diabo era concreto. Você sabe, na Ilíada e na Odisseia também, os
Deuses falam com os heróis. Os heróis não pensam. São os Deuses que falam com
os heróis. Moisés também, ele encontrou com Deus. Deus falou com ele. E nossa
civilização traduziu isso. Nós não mais
somos assediados pelo diabo. Nós ficamos ansiosos pelos nossos pensamentos.
Ficamos ansiosos por causa do nosso ego. E ainda assim, a constância é a
qualidade de absoluto que atribuímos aos
pensamentos. É interessante constatarmos que aquilo que pensamos que é, É.
Podemos colocar de outra maneira.
Pensamos: Trata-se disso! Sim,
trata-se disso porque pensamos que trata-se disso.
Quando você vê a sala de meditação
nesse momento, você pensa que ela é real. Para você, a sala é real. Mas é o
pensamento que é real. Não existe sala
que seja real. Mas, a pessoa acha que sim, que é real. Do mesmo modo, pensamos
que hoje é domingo. E então, hoje é domingo. Dentro de alguns dias, as pessoas
pensarão que um ano se passou. E que um novo ano começa. Nosso mundo é um mundo
de pensamento. Pensamos que isto ou aquilo é o caso. Por isso é que quando
penso que minha vida é um fracasso, minha vida é um fracasso. É tão absoluto
quanto a parede que tenho à minha frente. Mas, é só um pensamento. Esse momento
de dúvida não é somente uma emanação abstrata. Ele se torna real. Ele é real.
Nosso objetivo quando praticamos a meditação
é ver que a realidade nos é dada. Ela não é encontrada. Damos a qualidade de
real aos pensamentos. Tornamos os pensamentos reais. Mas, na verdade nós não
encontramos realidade nos pensamentos. Uma das maneiras mais certas de tornar
algo real é afirmar EU SOU ISTO OU AQUILO. Eu estou com raiva. Eu estou com
medo. Eu sou um fracasso. Esse tipo de afirmativa dá ao EU verdade, realidade.
A outra maneira de se confirmar a
realidade é dizer ISSO É. Essas são as duas maneiras mágicas dentre as quais
nós oscilamos e através das quais
fazemos a realidade existir. Afirmamos: está chovendo. E há uma realidade nessa afirmação.
O mestre diz: Um pensamento de dúvida em sua mente é Mara.
E ele continua: Se você realizar que os 10.000 dharmas nunca chegam a existir; que a mente é tal e qual um
fantasma; que não existe nem um grão sequer de poeira de dharma; que não há
lugar que não seja imaculado e puro… isso é Buda.
No momento da dúvida, há Buda Mara. No
momento do fracasso, há Buda Mara. Qualquer pensamento, mesmo sendo mau, é Buda
Mara. Não existe pensamento que não seja Buda.
Mas Buda não é algo. Rinzai diz: Os
10.000 dharmas nunca chegam a existir.
As 10.000 coisas é um modo de falar do
mundo. Ao invés de dizerem o mundo,
os chineses usam a expressão as 10.000
coisas, quando se referem ao mundo.
Então, o mundo não se manifesta. Ou se
você preferir, o mundo não é real. Mas, isso é somente a metade da verdade. O
mundo é real porque o mundo é Buda Mara. É Buda que torna o mundo real. Somente
quando reconhecemos que é Buda que torna as coisas reais é que podemos dizer
que o mundo é uma ilusão.
Até este momento [quando reconhecemos
que é Buda que torna as coisas reais], uma pessoa não tem o direito de dizer
que o mundo é uma ilusão. Escutamos as pessoas falarem da natureza ilusória do
mundo, da natureza ilusória do ego, e daí por diante. Mas, tudo que estão
fazendo é derretendo frases. Eles não entendem o que se quer dizer quando
afirmamos que o mundo é uma ilusão.
Um discípulo fala ao mestre: O mundo é uma ilusão.
O mestre responde: Não insulte Brahman! Não insulte Buda!
Isso confunde muita gente, quando se
diz: o ego não é real, o ego é ilusório. Há muitos que não aceitam isso, eles
tentam fazê-lo sua própria verdade.
Enquanto houver Buda Mara, então Mara
é real. É Buda que faz Mara ser real. O ego é Buda Mara. O sentido de EU vem do
pensamento com o qual a pessoa se identifica. A pessoa é pensamento. A pessoa é
esse monstro: essa combinação de Buda e Mara que se forma a personalidade. Que
forma o que chamamos de “mundo”.
Ele diz: Os 10.000 dharmas nunca chegam a existir. Isso vem do Prajna
Paramita[7]: Nem olhos, nem ouvidos, nem nariz, nem
língua, nem corpo, nem mente. Essas
são as 10.000 coisas.
Quando você está trabalhando sobre o
koan O QUE É MU?, você está enxergando dentro dessa verdade. Essa verdade. Mu é
a verdade de que as 10.000 coisas nunca chegaram a existir.
É como o filme na tela do cinema. Ele
não existe, na verdade. Quando você vai ao cinema, o filme na tela não é real.
Ele deve sua aparente realidade à luz. Quando você vê um filme, o que você está
vendo é a luz. É a luz que dá ao filme continuidade e permanência. Se a luz
falha e começa a oscilar num liga-desliga, haveria uma interrupção no filme. A
pessoa veria a interrupção. Mas, durante
as duas horas que a pessoa está assistindo o filme, é a luz que é constante. E
ela da a aparência de que algo real está acontecendo na tela. Do mesmo modo, é
a luz que faz com que essa sala tenha a aparência de ser real, a aparência de
que algo está acontecendo nela. Mas, é só uma bruma. Só um sonho.
O que aconteceu à mesa onde você tomou
seu café da manhã? Podemos ver que agora, ela é uma memória. A mesa do café da
manhã é uma memória. E a minha mesa e a sua mesa não são a mesma. Eu vi o
comprimento da mesa e você a viu pela sua largura. Você viu a mesa tendo uma pessoa do outro
lado e essa pessoa viu você do lado oposto da mesa. Então, cada um de nós tem sua própria mesa do
café da manhã. Então, onde está essa mesa do café da manhã?
Mesmo que você recrie toda a situação
com a mesa, seria uma recriação, não seria a mesa. Aquela mesa do café nunca
existiu. Ela já está passando até mesmo
quando você esteve sentado nela porque o serviço dos pratos estava mudando
constantemente na mesa. Não é somente
isso. A sua reação ao que estava acontecendo à mesa também estava mudando. E na
verdade você nunca viu a mesa. Você a viu quando você emerge de seus
pensamentos e luta para lembrar-se do que estava acontecendo naquele momento. A
mesa era somente um elemento dentro de um conjunto complexo de coisas. Agora, é
somente através da virtude da palavra mesa que podemos fixá-la momentaneamente,
mas durante um tempo suficiente para poder falar dela. Até o momento em que eu
abra a boca para falar da mesa, ela tinha simplesmente desaparecido. Ela tinha
sido reabsorvida na totalidade.
E assim é com esse momento agora. Ele
também está passando. Não há uma fronteira pela qual uma sensação ou uma
experiência passe do status de coisa real ao status de memória. Não há
fronteira. Aquilo que é real é memória. Tudo é visto através do nevoeiro da
memória.
Os 10.000 dharmas nunca chegaram a
existir. Mas isso não significa que nada existe. Não estamos falando de
idealismo. Quero – de modo bem concreto – que você entre dentro da atual
experiência que você está tendo do que está acontecendo para que você acorde
para aquilo que está acontecendo e não subestime as coisas.
Você assume que o zendo[8]
existe sem questionamentos. A palavra zendo cola em você. Você diz zendo, eu
digo zendo, ela diz zendo e por isso, um zendo existe. Nós assumimos isso como
verdade. Assumimos sem questionamento que há um sesshin[9].
Usamos a palavra sesshin. Nós nos preparamos para o sesshin. Ficamos ansiosos
para participar do sesshin. Ficamos apavorados com o sesshin e assim vai.
Então, por isso, há um sesshin.
Nós pensamos e por isso a coisa
existe. Nós damos nome a ela e por isso ela não apenas existe, como também se
torna uma coisa sólida. Veja, isso não é uma palestra de filosofia, mas um
discurso de encorajamento, um chamado para que você acorde para as coisas tal
qual elas são. Isso é real… Você não vai me dizer que é ilusão… É real! E
qualquer pessoa que não se opuser a isso está sendo ludibriado.
Temos de nos opor. Quando nos é dito
que: Nem olhos, nem ouvidos, nem nariz,
nem língua, nem corpo, nem mente, isso deveria deixar você de cabelo em pé!
Nós dizemos: é claro que eu tenho nariz!
Você tem nariz porque você diz que
nariz existe! É você que torna o nariz real! É por isso que dizer que o nariz é
uma ilusão é tão ofensivo para você! Mas, você consegue ver que tipo de
realidade é essa? Não é a realidade que você encontra. Estamos falando da
realidade que você É.
E quando você pergunta QUEM SOU EU?,
você pergunta isso com o objetivo de extirpar da realidade a forma que você deu
a ela. A forma passa a não mais ser real. Foi você quem deu aquela forma à
realidade.
Quando você enxergar isso, toda a
miséria da sua vida, verá que foi você que deu à sua vida essa forma. Quando
você diz MINHA VIDA É UM FRACASSO. Isso não é uma ilusão, não é um sonho. Você
não está imaginando coisas. Sua vida É um fracasso porque você disse que é. No
momento em que você disse aquilo, sua vida É um fracasso.
Não estou dizendo que mudando sua
mentalidade, sua vida será um sucesso. Isso é absurdo! É muito mais profundo do
que isso. Não se trata de EU POSSO MUDAR
MINHA CABEÇA. Porque a própria realidade que atribuo ao que sou também me é
dada.
A grande ilusão é acreditar que EU
posso mudar, que EU posso fazer minha cabeça de que isso ou aquilo será assim
ou assado. Isso é uma grande ilusão. EU não estou no controle. EU não posso
decidir que vou fazer isso ou aquilo.
É por isso que precisamos de anos de
prática espiritual.
Se você se deixar constantemente ser
levado por isso, se você compreender Mara como sendo uma realidade independente
que está ali, então, claro, você está simplesmente perpetuando o drama no qual
você se engajou desde o começo.
Mas se você realizar que os 10.000
dharmas nunca chegam a existir e que a mente é como um fantasma… A mente não
existe! Essa é a coisa! Pensamos que a mente existe! Pensamos que ela é algo
como uma bolsa ou caixa ou dossiê que contém nossas memórias e pensamentos.
Pensamos que existe a mente como um recipiente. Um recipiente sutil. Uma mente
sutil.
A mente não existe! Nem mesmo um único
grão de poeira ou um único dharma existem. Rinzai afirma: Isso é Buda.
Quando a pessoa realiza isso, ela
acorda para aquilo que é. Mas, Rinzai diz que, antes de chegar a esse ponto, não há lugar que não seja imaculado e puro.
Começamos esse teisho dizendo que carregamos conosco o sentido da perfeição. E
nos julgamos a nós próprios tendo como pano de fundo esse sentido da perfeição
e achamos que não estamos à altura. Frequentemente usamos essa medida contra
outras pessoas, contra outras situações.
Essa medida está constantemente ali.
Mas as coisas não estão à altura. Há esse julgamento constante que fazemos,
comparamos aquilo que é com a condição ideal. Essa condição ideal é nossa
natureza verdadeira.
Rinzai diz: Não há lugar que não seja imaculado e puro. Assim como diz Hakuin
na Canção do Zazen[10]: Este lugar
aqui mesmo onde estamos é a Terra Pura do Lótus.
Em um determinado momento, Rinzai diz: Não há nada que eu odeie.
É maravilhoso poder dizer isso.
Mas, tudo volta ao mesmo, ou seja, o
reflexo da sua verdadeira natureza. Tudo é uma manifestação da sua verdadeira
natureza. Tudo é perfeito. Até mesmo uma xícara quebrada[11] é
perfeita.
Rinzai continua: Segundo meu ponto de vista, não há Buda, não existem seres senscientes[12],
não existe passado nem presente.
Isso corta tudo. Isso é Mu[13].
Mu Buda. Mu seres senscientes. Mu
passado. Mu presente. Tudo deve ser colocado sob o machado.
Quando começamos um sesshin, nós
homenageamos Manjusri[14].
Manjusri é representado com uma espada. Aquela espada é Mu. Ela está
constantemente cortando.
Ela está abrindo clareira dentro da
crença no absoluto. Essa crença de que há coisas que duram de forma absoluta.
Rocha Eterna. Nosso Deus é uma fortaleza poderosa. Essa noção de fortaleza
poderosa, de Rocha Eterna. Uma igreja construída sobre a rocha. Todas essas
expressões nos indicam a noção de algo sólido. Algo absoluto.
Lembremos, uma outra maneira de se
falar da realidade ou da perfeição imaculada é se falar do absoluto. Você é o
absoluto. Você faz as coisas serem absolutas. E quando você está trabalhando no
koan MU, penetrar MU significa que a pessoa libera tudo das garras do absoluto.
Tudo passa a ser visto como um aspecto de um todo dinâmico, vivo e inteligente.
Rinzai diz: Chega-se à iluminação instantaneamente. Não requer um tempo. Não
requer prática. Não requer realização. Nem ganho, nem perda.
De novo, essa imediatez. Até aqui, tem
de se ser UM. Tem de ser instantâneo. Ou a pessoa vê ou não vê. Se a pessoa
vir, ela viu. E por isso que no Zen se fala do despertar repentino.
Mas, há um despertar repentino e uma
maturação gradual. Isso é algo que muita gente não entende. Pensa-se que esse
despertar repentino significa que a pessoa é completa e totalmente perfeita em
suas manifestações. Mas, ninguém nunca pode ser completo e perfeito em suas
manifestações enquanto houver manifestações.
Há ações dentro de um mundo de ações
contrárias. Nós nos perturbamos. Toda vez que nós nos mexemos, nos perturbamos.
Até mesmo esses monges que tentam caminhar em toda quietude para não perturbar
ninguém. Eles também perturbam. Toda vez que alguém faz alguma coisa esse
alguém não será capaz de fazer algo perfeito.
Isso é também algo que a maioria não
entende. A sua personalidade foi esculpida das mais difíceis
circunstâncias. As características-chave
de sua personalidade foram formadas durante momentos de intensa dor e aflição.
E você não conseguirá se desfazer delas muito facilmente. Principalmente se
você teve uma vida dura. Há pessoas que são criadas e cuidadas de modo a não
enfrentar os tormentos que a maioria tem de enfrentar.
Santa Teresa do Menino Jesus[15]
cresceu em condições ideais maravilhosas. E como consequência, ela já era santa
antes mesmo de ser santa. Mas, não é assim com a maioria das pessoas. E em
consequência, há trabalho duro e muito frequentemente, trabalho inacabado.
Mas,
isso não tem nenhuma importância. Nenhuma importância mesmo. O que importa é
que você penetre na verdade de que, em primeiro lugar você não é algo e que, em segundo lugar, aquilo
que você pensa ser algo é de fato uma ilusão. Isto é a qualidade de ser algo. E
você foi quem atribuiu a qualidade de ser algo.
Ele diz : Embora haja um dharma que supere isso, eu digo a você que ainda assim é
como um sonho.
Como um fantasma. Em outras palavras:
saber que não há nada além ou mais evoluído do que o saber. Saber é saber.
Saber não depende de nada. Saber não se origina de nenhum lugar fora de si
mesmo. É por isso que dizemos que saber é absoluto.
Saber é a origem, a fonte. Saber é
aquilo que dá existência ao mundo. E criar deuses, budas ou paraísos é
simplesmente outro sonho. Outra ilusão. É uma outra maneira de saber. Mas, não
é o saber em si mesmo.
Rinzai diz: Ouvi, buscadores! Aquele que, nesse momento, diante de meus olhos,
brilha por si só e escuta atentamente ao que estou dizendo, esse não perde
tempo em nenhum lugar, penetra as 10
direções e está livre em casa nos 3 reinos. Me ouvindo, você está totalmente
livre. A liberdade é a sua natureza.
Como ele diz: Aquele que, nesse momento, diante de meus olhos, brilha por si só.
De novo, esse brilhar por si só. Você está brilhando por si só. Brilhando em
unicidade.
Quando o Buda diz: Eu sozinho –
no céu e na terra – sou aquele que é honrado. Ele fala aqui de cada
um de nós. Cada um de nós sozinho. Todos UM[16].
Tudo é engolido no seu brilho. Quando você está meditando, tudo é engolido no
seu brilho. Na atenta escuta.
O que significa ser capaz de escutar o
meu discurso? Você está claramente escutando meu discurso. Como é
possível ? Claro que é. O cérebro e tudo o mais. Esses são os meios. Mas o que é essa escuta? Quem é esse que
escuta?
Mais uma vez, quando colocamos a
pergunta QUEM SOU EU? ou QUEM É ESSE QUE ESCUTA?, nós devemos ir além das
palavras. Devemos entrar dentro da escuta.
Ou se perguntamos O QUE É QUE
CAMINHA?, a pessoa tem de entrar dentro do caminhar. Não estou dizendo que
temos de caminhar. Nós caminhamos antes mesmo de caminhar. E o que é esse caminhar
antes de caminhar? O que é esse escutar antes de escutar?
Pense no que Buda diz: Se o sino parar de tocar, você para de
escutar?
Esse escutar antes e depois de
escutar. O que é esse escutar que escuta? Quando falamos, nós continuamos a
escutar. Não necessariamente escutando outra coisa. Escutar. Conhecendo através do escutar. O que é esse
conhecendo através do escutar? Conhecendo através do ato de ver?
Aquele que, nesse
momento, diante de meus olhos, brilha por si só e escuta atentamente ao que estou
dizendo, esse não perde tempo em lugares distantes do aqui e agora.
Lembre-se que Jesus disse: O filho do homem não tem onde reclinar a
cabeça.
Ele não se demora em nenhum lugar.
Nenhum lugar.
Alguém perguntou a Ramana Maharshi[17],
quando ele estava morrendo: Para onde
você está indo?
E ele diz: Não estou indo para nenhum lugar.
Não há nenhum lugar para ir. Nós não
nos demoramos em lugar nenhum. Nós não estamos fixados em nenhum ponto do
espaço. Nós não estamos no céu nem no inferno, nem na terra.
Ele penetra as 10
direções e está livre em casa nos 3 reinos.
Os reinos da forma, desejo e não-forma.
E você se move através de todas essas direções e formas. Agora você está
dormindo, agora você está acordado. Agora você está com raiva. Agora, com fome.
Mais adiante você está impaciente. E agora você está vendo um filme no cinema.
Você está dirigindo um carro. Agora está comprando algo no supermercado.
Tudo isso é constante Há uma constância. Há esse brilhando
por si só dentro do supermercado. No carro. No cinema. Lendo um livro.
Brilhando por si só.
Embora entre na
diferenciação de cada estado, essa pessoa não pode desviar-se.
Você se dirige a todos esses caminhos.
Você é velho. Você é jovem. Você está doente. Você tem sucesso. Você é um
fracasso. Essa pessoa não pode
desviar-se, não pode mudar. Não pode ser transformada em algo que ela não é.
Você é intocável. Nada pode tocar você. Nada pode ferir você. Até mesmo a dor
não pode machucar você. Até a morte não pode matar você.
Viajando por todo
lugar, em todas os territórios, trazendo iluminação para todos os seres senscientes,
essa pessoa nunca está separada da mente cotidiana.
É como a lua que brilha nas poças,
lagos e mares e ainda assim permanecendo a lua. Nunca separado da mente cotidiana.
Essa é a única realidade que existe. É a fonte criativa do universo.
Totalmente imperturbável.
Todo lugar é
puro. A luz ilumina as 10 direções. E os 10 mil dharmas são Um.
É uma frase maravilhosa: Todo lugar é puro. A luz ilumina as 10
direções. E os 10 mil dharmas são Um.
Essa luz não é uma luz que você vê. Essa
luz está em todo lugar. Essa luz que está brilhando não é uma luz que você vê.
É a luz dos primórdios, quando Deus disse: Fiat
lux, faça-se a luz. A luz vem primeiro e isso não significa que “primeiro”
seja uma referência no tempo. Quero dizer que primeiro vem a luz no sentido de
que tudo é revisto nessa luz. Essa luz torna tudo possível.
Quando você acorda de manhã e tudo
passa a existir dentro da luz que você é quando acordado. O mesmo se dá quando
você vai dormir: tudo se funde na luz que você é quando está dormindo.
Buscadores do
caminho! Agora nesse momento, a pessoa decidida
tem toda convicção que desde o começo, não há nada a ser feito.
Por que ele diz a pessoa decidida? A pessoa decidida é real. Quando você vê dentro
dessa verdade que você é a realidade, você vê que não há nada que precise ser
feito. Tudo está acontecendo, mas nada precisa ser feito. Tudo é essa emanação
daquilo que é constante. Daquilo que é absoluto. Ou talvez daquilo que é AGORA.
Você corre atrás
das coisas sem sossego pelo único motivo de que sua fé é insuficiente. Tendo
jogado fora sua cabeça, você fica rodando procurando-a. Incapaz de parar você
mesmo.
Só porque sua fé é insuficiente.
Quando dizemos que você é o Real ou você é o Absoluto ou você é
perfeição, o problema é que você não entende esse VOCÊ É. Não queremos dizer que haja uma substância
que é absoluta ou real ou uma energia ou vibração qualquer. Você é, você está constantemente vindo à
existência. Quando você pensa desta forma, você vem a existir. Tente se tornar
totalmente uno com o fato de que você está vindo a existir agora nesse
instante. Não se separe de nada que está se manifestando agora nesse instante.
Quando você se pergunta QUEM SOU EU?,
penetre no que quer que esteja presente agora nesse instante. É o mesmo quando você se pergunta O QUE É
MU? Entre no que É agora mesmo. E acorde
a mente. Quando você acorda a mente, aquilo que você pensa que você é cairá por
terra. Não pode se manter… mas, para tal você deve despertar a mente. E para
isso, você tem de ter fé.
[1] Teisho de Albert Low traduzido por Débora Bolsanello e
revisado por Alexandre Cursino e Valéria Sattamini. O presente teisho é
classificado pelo Centre Zen de Montréal por 684-2de7-Dec.1999-Reading_from_Rinzai.
[2] Rinzai é uma das três linhas de zen budismo japonês, ao lado das
escolas Sōtō e Ōbaku. Rinzai é uma ramificação da escola chinesa Linji, fundada por Linji
Yixuan (Rinzai Gigen), durante a Dinastia Tang. Foi levada da China ao Japão em
torno do ano 1191, pelo monge Myoan Eisai.
[3] A árvore sob a qual Buda se sentou é conhecida como Bo ou
Bodhi.
[4] Sesshin é um retiro
com prática de meditação coletiva e intensiva.
[6] Conta a história que
quando o príncipe Gautama foge para conhecer o mundo fora das muralhas de seu palácio, ele é profundamente marcado
por três encontros: com uma pessoa doente, um velho e uma pessoa morta. É possível que esses encontros tenham sido
determinantes para que Gautama decida deixar o palácio definitivamente e ir à
busca do sentido da existência humana.
[7] Um extrato do Prajna Paramita diz : Nem olhos, nem ouvidos, nem nariz, nem língua, nem corpo, nem mente,
nem cor, nem som, nem cheiro, nem sabor, nem tato, nem fenômeno…
[8] Zendo é o espaço físico,
uma sala onde se pratica zazen (meditação).
[9] Sesshin é um retiro com prática intensiva de
meditação.
[10] A canção do
zazen de Hakuin Ekaku
Desde sempre todos os seres são Budas.
Como a água e o gelo: não há gelo sem água
Fora de nós não há Budas
Como a água e o gelo: não há gelo sem água
Fora de nós não há Budas
Sem perceber quão próxima essa verdade está,
Nós a buscamos tão longe
Nós a buscamos tão longe
Como alguém estando imerso dentro d’água
Chorando desesperadamente de sede
Chorando desesperadamente de sede
Como o filho de um rico homem
que vagueia na miséria, desnorteado
que vagueia na miséria, desnorteado
A razão porque nós vagamos
através dos Seis Reinos é porque
nós estamos perdidos nas trevas da ignorância.
através dos Seis Reinos é porque
nós estamos perdidos nas trevas da ignorância.
Como poderemos nos liberar do nascimento e da morte?
Não há palavras que sejam suficientes para elogiar a prática do zazen
Não há palavras que sejam suficientes para elogiar a prática do zazen
Observar os preceitos, arrepender-se e doar-se
Tudo isso vem da prática do zazen
Tudo isso vem da prática do zazen
Mesmo aqueles que sentaram-se em zazen apenas uma vez
Lograrão superar o karma.
Lograrão superar o karma.
Não mais eles irão encontrar maus caminhos,
E a Terra Pura não estará muito longe.
E a Terra Pura não estará muito longe.
Se nós escutarmos esta verdade, mesmo que apenas uma vez,
Com o coração aberto a louvarmos e alegremente a abraçarmos
Se ao refleti-la profundamente em nós mesmos,
Nós atingirmos a auto-realização,
Dando prova da Verdade
De que auto-realização é não-realização
Com o coração aberto a louvarmos e alegremente a abraçarmos
Se ao refleti-la profundamente em nós mesmos,
Nós atingirmos a auto-realização,
Dando prova da Verdade
De que auto-realização é não-realização
Nós iremos além das palavras fúteis.
O portal da unidade da causa e efeito abre-se
O portal da unidade da causa e efeito abre-se
Não dois
Nem três
Ante nós está o caminho reto
Nem três
Ante nós está o caminho reto
Percebendo a forma da não-forma
Indo e vindo
Nós nunca saímos de casa
Indo e vindo
Nós nunca saímos de casa
Percebendo o pensamento do
não-pensamento
Cantando e dançando somos a voz e a dança do dharma.
não-pensamento
Cantando e dançando somos a voz e a dança do dharma.
Quão vasto e amplo
É o espaço sem fim do Samadhi!
É o espaço sem fim do Samadhi!
Neste momento o quê mais precisamos buscar?
Quando a eterna tranquilidade da Verdade
Revela-se a nós,
Este lugar aqui mesmo onde estamos é a Terra Pura do Lótus
E este nosso corpo
É o corpo de Buda.
Revela-se a nós,
Este lugar aqui mesmo onde estamos é a Terra Pura do Lótus
E este nosso corpo
É o corpo de Buda.
[11] There is a crack in everything / That is how the light
gets in.
Há uma rachadura em tudo / É assim que a luz consegue
entrar.
Poema de Leonard Cohen (N. do T.).
[12] A expressão sentient
beings pode ser traduzido por seres sensíveis
(em termos de sensação) ou seres senscientes.
Optamos pela última por ser mais abrangente pois seres senscientes sentem,
percebem, pensam, etc.
[13] Mu significa não em japonês.
[14] Manjusri é
representado como um bodisatva masculino empunhando uma espada flamejante na
mão direita, representando a realização da sabedoria transcendente que corta a
ignorância e a dualidade. É dito que sua espada corta não em dois pedaços, mas
em UM.
[15] Santa Teresa do Menino Jesus também é
conhecida como Santa Teresinha ou Santa Teresa de Lisieux.
[16] Albert Low faz um
jogo de palavras que não é possível ser traduzido: ele brinca com as palavras alone (sozinho) e all one (todos um).
[17] Ramana Maharshi é um dos mestres de Advaita Vedanta, nascido na Índia em
30 de dezembro de 1879 e falecido em 14 de abril de 1950. O foco de seus
ensinamentos é a pergunta: QUEM SOU EU?
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