TEISHO 3
Investigar a
utilidade da prática espiritual[1]
autor: Albert
Low
Continuemos lendo e
debatendo sobre Nisargadatta. Vejamos a pergunta que alguém faz a ele: “Por que
o desconhecido deveria me interessar? Qual a utilidade do desconhecido?”
Nisargadatta responde: “ Nenhuma utilidade.”
Podemos falar o mesmo sobre
nossa prática. Qual é a utilidade de
nossa prática? Nenhuma. Às vezes, as pessoas ficam chocadas quando ouvem isso
porque elas sentem: “Então qual o sentido de meditar se não há nenhuma
utilidade?” Isso porque em suas mentes
as noções de utilidade e valor são equivalentes. O único valor que nossa
sociedade reconhece é o da utilidade. Tudo deve ser útil. E a suprema utilidade
de todas as nossas atividades, toda nossa indústria, toda nossa educação é
fazer dinheiro.
Aquilo que é útil faz parte
da máquina. É como uma engrenagem da máquina. Uma engrenagem é muito útil
porque sem ela a máquina não funciona. E enquanto você for útil, enquanto o único
critério de sua vida for se você é ou não útil, então você continuará sendo
apenas uma engrenagem da máquina.
Aquilo que não é útil não
faz parte da máquina. Não está atrelado aos limites que a máquina impõe. Então, aquilo que não está atrelado ao
critério da utilidade é livre. Liberação, a grande liberação. Esse é o objetivo
de nossa prática. Mas, se você encarar a prática somente como uma técnica cujo
objetivo é alcançar a liberação, você está trazendo-a de volta à categoria de
utilidade.
Nisargadatta diz que o
desconhecido não tem utilidade. Ele continua seu discurso, dizendo que vale a
pena saber o que mantém você dentro dos confins limitados daquilo que é
conhecido. É o total e correto conhecimento do conhecido que leva você ao
desconhecido. É por isso que nós dizemos: você tem de usar a mente. A mente é o
que pode nos liberar. Ela pode nos liberar na medida em que nos leva até seus
limites. E isso implica que não subestimemos nada. Tudo aquilo que
subestimamos pode nos acorrentar, nos
limitar, nos aprisionar.
Perguntas tolas. São as
perguntas que ninguém pergunta porque ninguém sabe as respostas. “Isso é útil?”. São as perguntas tolas
que podem abrir perspectivas que estão
fechadas porque as subestimamos.
Possivelmente a questão mais tola
de todas é: “O que é tudo isso?”, “O que são as coisas?”
Outra pergunta tola é : “O
que sou eu[4]”?
Essas perguntas são tolas porque elas não têm respostas. A nível conceitual,
elas não têm correspondentes.
A pessoa tenta
desesperadamente responder à pergunta: “O que sou eu?”. E fazendo isso, a
pessoa deve reconsiderar tudo que
consideramos ser nós mesmos. Sabemos que nos identificamos com as situações.
Sabemos que nos identificamos com as emoções. Nos identificamos com aquilo que está
acontecendo em torno de nós. E com as
coisas que sentimos que possuímos. Mas,
o que significa “identificar”? Buscamos identidade. Mas o que é
“identidade”? O que é “identificar(se)”?
Em outras palavras, olhamos
para aquilo que está sendo constantemente utilizado. Aquilo que constantemente faz parte de nosso vocabulário.
Aquilo que utilizamos durante toda vida presumindo que sabemos do que estamos
falando. E aí vem a pergunta: “O que é
isso”? Pergunto a você: O que é saber? O
que significa “ser”? O que significa “possuir”?
Não se trata de achar um sinônimo. Não se trata de responder: “Possuir é
ter algo.” Trata-se de perceber o
sentimento do que é possuir esse carro. Eu possuo essa casa. Esse chapéu é meu.
O que isso significa?
O que isso significa para
você? Não se importe com os demais. O
que significa para você quando você diz: “isso é meu, isso é seu”? O que há dentro dessas palavras? No fundo, essa necessidade de se dizer “isso
é meu”, essa ambição que temos parece
ser um dos problemas, um dos principais klesas[5].
Não estou sugerindo que você questione essas coisas enquanto estiver
meditando. Ao menos que isso venha a
você espontaneamente, da atenção. Mas é o tipo de questionamento que você pode
fazer estando sentado em sua poltrona. Ao invés de ver televisão, porque não
passar alguns momentos cogitando sobre isso? Não é má idéia ter alguma
atividade manual, algum artesanato para ocupar as mãos ao mesmo tempo que você
faz suas reflexões. Isso é o que é necessário.
É por isso que afirmamos que você deve estar presente durante o dia e estar
muito atento ao que se passa. Dê uma olhada em você mesmo quando você se torna
raivoso. Ou cínico. Ou ansioso. Veja se encontra exemplos daquilo que chamamos
de personalidade, dos diferentes ângulos da personalidade. E mais tarde, quando
você estiver trabalhando na questão: “Quem sou eu?”, você tem um leque de
possibilidades para investigar.
Qual a diferença entre um
sentimento e uma emoção? Haveria uma diferença?
Qual a diferença entre um pensamento que você pode sentir e um
pensamento que você tem sem que ele
esteja ligado a sentimento algum? Em outras palavras, você está investigando
sobre si mesmo e permita que eu repita: isso não significa que você possa então
escrever um tratado filosófico ou psicológico. Trata-se de se familiarizar com
seu mundo interno, esse mundo que é feito de saber, do “conhecendo”. Tudo que estou falando se refere a modos de
saber, modos de conhecer. Isso é o que queremos dizer quando mencionamos: “a
vida interior”. Você deve ir para
dentro. Mas, isso não se refere a uma área
em seu corpo ou na cabeça, mas trata-se de olhar para as coisas sob o ponto de
vista do “conhecendo”, ao invés do ponto de vista do “pensando”, “vendo” ou “escutando”.
É o total e correto
conhecimento do conhecido. Quando
você está explorando isso, você quebra a
concretude daquilo que você chama de “eu”.
Muito desse “eu” foi construído
em nossa tenra idade. Quando o mundo apresentou-se cheio de gigantes e ameaças, era um mundo de
coisas desconhecidas. E o bloqueamos, nós o compensamos, o substituímos, o
imaginamos e constantemente nós construímos uma maneira de lidar com esse
mundo, sobretudo com o que consideramos ameaçador no mundo. Construímos a
personalidade em cima dessa base. E agora você está vendo o que é essa
personalidade. A pessoa precisa ir ao
essencial, à essência, à raiz.
O que mantém essa estrutura
coesa? Essa estrutura está a serviço do
quê? Todas essas defesas, manobras e estratégias que aprendemos e adotamos?
Nisargadatta diz: “Você não pode pensar em termos de utilização e
vantagens. Uma condição incontornável
para a liberação: estar quieto e desapegado, além das garras da preocupação consigo próprio ou de toda consideração
egoísta.”
“Além das garras da preocupação consigo mesmo”. Isso é algo que
vale a pena ser investigado. Ver que devotamos muito de nossas vidas à preocupação
consigo mesmo a fim de preservar a noção de si mesmo (the sense of self). Para
manter a noção de si mesmo (the sense of self). Observe que eu uso a expressão
“noção de si mesmo” deliberadamente. Algumas pessoas usam a palavra “ego”, mas
eu não. Esse termo não é explicativo. “Ego” é “eu”.
Embora uma pessoa possa
investigar “Eu” com bastante interesse, não há nesse termo o mesmo peso que “noção
de si mesmo”. Ela se situa entre uma sensação e um sentimento. A primeira coisa que alguém deve fazer para se
conhecer é conhecer a noção de si mesmo. E ver o quão onipresente ela é. E ver
que embaixo dela está essa tensão da qual falamos ontem. Autorreflexão. A noção
de si mesmo começa com a autoconsciência, o “conhecendo” a si mesmo. E então, começa com o “conhecendo” a
consciência em si.
“Toda preocupação consigo
mesmo, toda consideração egoísta.” É interessante ver como amarramos tudo em
torno de nós mesmos. Quando os dois aviões atingiram as torres de Nova Iorque,
uma mulher exclamou: “Droga, agora não posso mais ir ao cabeleireiro fazer meu
cabelo!” Nossa reação quando ouvimos
falar de um desastre: “Poxa, poderia ter sido comigo!” Nós nos colocamos
imediatamente na situação. Ligamos tudo a nós mesmos.
Você tem 10 mil pessoas
morrendo na China e isso é horrível! Você tem 100 pessoas morrendo na América e
isso é terrível! Você tem 10 pessoas morrendo em Montreal[6]
e todo mundo começa a gritar! Você tem
uma pessoa morrendo em sua rua e isso é uma calamidade! Uma pessoa morrendo em
sua família e isso é o fim do mundo.
Você diz: “Isso é
natural.” Sim, isso é natural. Mas não
significa que seja certo.
Nisagardatta afirma: “Você
pode chamar isso de morte. Para mim, isso está vivo e está no ápice daquilo que
é mais significativo e intenso pois eu sou um com a vida em sua totalidade e
completude. Intensidade, importância e harmonia. O que você quer mais além
disso?”
Essa é a direção na qual
estamos indo. Não dizemos que isso faz de nossa prática algo útil porque seria
a maneira errada de encará-la. É assim
que é nesse momento. Temos essa tremenda
construção que elaboramos e que ainda estamos elaborando a fim de manter a noção de si mesmo. Abandone a noção de si mesmo e você está
livre.
E a pergunta é: “ Não
precisamos de mais nada?” Sim, mas você
está se referindo àquilo que pode ser conhecido. E Nisargadatta diz: “Somente o
silêncio fala sobre o aquilo que não pode ser conhecido.” Isso não significa que se você ficar sentado
em silêncio você estará automaticamente expressando aquilo que não pode ser conhecido.
Note que há uma nuance entre o desconhecido e aquilo que não pode ser
conhecido. Talvez achemos que são a mesma coisa. Mas, vale a pena pensar: “O que essa nuance
significa?” O desconhecido é potencialmente conhecível. Há muito que não era conhecido no século XX e
que agora é conhecido. O desconhecido muda.
Mas, aquilo que não pode
ser conhecido nunca pode ser conhecido. Ele é o transcendente. Isso é o que
queremos dizer quando falamos “é, sendo, conhecendo”. Essa é a anatomia do transcendente. Essas
palavras que estamos usando agora não são do mesmo teor das palavras “mesa”,
“cadeira”, “estrada” ou “carro” porque todas elas designam coisas. Podemos
apontar para essas coisas.
Usar a palavrar “sendo” é
mais como se abríssemos uma janela. Ela
se abre se a pessoa olha através da janela. Em si mesma, a janela é uma lacuna.
Você tem de olhar através da janela ou permitir que a luz brilhe através da
janela para que ela cumpra seu papel. Do mesmo modo, a expressão “sendo” ou “conhecendo” é um
convite para que abramos a mente em uma certa direção. Ao menos que esse
convite seja aceito, usar palavras é lidar com coisas que são sem significado.
A palavra “sendo” em si mesma não tem significado. Mas você olha através da
palavra e então você compreende um pouco sobre aquilo que a palavra está
abrindo para você.
“Somente o silêncio fala
sobre aquilo que não pode ser conhecido. A mente pode falar apenas daquilo que
ela conhece. Se você, de modo cuidadoso, investigar aquilo que é possível
conhecer, ele se dissolve. E apenas
aquilo que não é possível conhecer permanece.”
Por quê? Por que será que o conhecido se dissolve face a uma cuidadosa investigação?
Trabalhamos acreditando que
as palavras que usamos denotam objetos fixos, objetos que têm suas próprias
qualidades. Por exemplo, a palavra “Eu”.
Na palavra “mundo”, “espaço”, “tempo”, “pessoas”, “uma pessoa”, “carro”.
O que a palavra está fazendo aqui? O que é esse pensamento que, combinado com
outros pensamentos representa o que chamamos de conhecimento? O que é esse
conhecimento? É uma estrutura de conceitos, memórias. O que está por baixo
dessas memórias e conceitos? O que dá a eles sua realidade?
Quando eu uso a palavra
“homem” ou “mulher”, isso significa algo. Mas, de onde vem seu
significado? O significado não vem
daquilo que a palavra designa. Então, de onde a palavra tira seu significado? Quando a pessoa realmente investiga essa estrutura
conceitual – que é uma das maneiras através das quais a gente usa a palavra
“mente” – é uma estrutura conceitual. Quando a investigamos, quando a
examinamos em termos de onde ela obtém seu significado, seu valor, nós compreendemos que é do saber,
da consciência sem objeto[7].
O significado é uma maneira pela qual
dirigimos a consciência sem objeto – focando-a – e a fixamos de um modo específico.
E o que acontece quando investigamos: nós aquecemos o gelo e ele se dissolve.
“Se você, de modo cuidadoso, investigar aquilo
que é possível conhecer, ele se dissolve.
E apenas aquilo que não é possível conhecer permanece.” Claro, isso é verdade quando se trata
daquilo que é mais sólido para nós: nosso sofrimento. Se tivermos a coragem de encarar nossa condição,
nossa ansiedade, nosso medo, nosso terror desesperado face aos anos que se
passam em direção do grande abismo... Se podemos olhar e ver dentro do âmago
dessa questão, de onde nosso sofrimento obtém seu poder: daquela volátil noção
de si mesmo, daquela escorregadia e fugidia noção de si mesmo que de algum modo
esta se apagando e perdendo seu poder. E desesperadamente precisamos contê-la, reconstruí-la,
dar a ela força novamente. E nesse
esforço para alimentar essa noção de si mesmo, de mantê-la viva, ela se dissolve ainda mais rápido e um pânico
se apodera de nós, o pânico de não conseguirmos fazer nada firme, nada sólido,
nada real.
Olhe bem. Veja bem o que dá
à noção de si mesmo essa qualidade particular. Há uma qualidade absoluta que atribuímos
a nosso sofrimento. É quase como que se déssemos ao sofrimento poderes mágicos
sobre nós. E se podemos identificar isso e ver de onde esse sofrimento obtém
seu poder, aí ele perde o poder. É como se fosse uma bruma que se dissolve. E há
algo maravilhoso do outro lado.
“Se você, de modo cuidadoso,
investigar aquilo que é possível conhecer, ele se dissolve. E apenas aquilo que não é possível conhecer
permanece. Mas, ao mínimo grão de imaginação e interesse, aquilo que não é possível
conhecer fica obscurecido e o conhecido vem para o primeiro plano.” Todos nós sabemos disso. Qualquer pessoa que
participou de um sesshin de maneira cuidadosa conhece aqueles momento onde – não
é que a pessoa entre em um espaço vazio, porque isso significaria que há uma separação
entre espaço vazio e pessoa – a pessoa está completamente esvaziada de qualquer conteúdo. Ha uma
totalidade, uma completude, a noção de “certo”. Uma abertura. E a pessoa diz a
si mesma: “Ah, é isso!” E imediatamente
a coisa acaba. Em um segundo, um flash.
É uma coisa curiosa. É como
se fosse um papel branco muito vasto, essa imensidão. E no centro do papel há um ponto preto. A
mente se fixa no ponto preto e perde a consciência, não reconhece mais toda a vastidão que está
em torno do ponto preto.
“Você vive dentro do conhecido, daquilo que
muda. Aquilo que não muda não tem utilidade para você.” É isso. Queremos movimento. Queremos estar
alcançando algo. Queremos agitação.
Muito de nosso sofrimento vem desta necessidade que temos de algum tipo
de drama, de excitação. É por isso que os jornais vivem de desastres, de
maneira lasciva. Se há desastre,
imediatamente está na primeira página, com fotos vivas, vídeos. Porque queremos
drama, queremos coisas mudando. Acredite ou não, durante a guerra[8],
havia uma tremenda excitação após um ataque, as pessoas saíam para ver o prédio
que havia sido destruído.
“Você vive dentro do conhecido, daquilo que
muda. Aquilo que não muda não tem utilidade para você.” E
ainda assim, você se abre exatamente para aquilo que não muda. Aquilo que nunca muda. O que é? Porque
trata-se daquilo que não se pode
conhecer, nossa prática requer muita fineza, muita delicadeza, o toque de
pluma. E é por isso que devemos sempre nos dirigir ao simples. Em direção
daquilo que é movimento sem movimento. É o cair de uma folha, a queda de uma
pétala de rosa.
“É somente quando você se satisfaz daquilo que
é mutável e que almeja pelo imutável que você está pronto para mudar de ótica e
entrar naquilo que a mente descreve como sendo vazio e obscuro.
Sabe, quando uma pessoa está
passando por um período de doença grave, lutando para atingir um certo equilíbrio... E aí, chega a possibilidade da calmaria.
Embora seja escura, parada. Embora pareça vazia, há um grande conforto. O que é
interessante é que constantemente estamos lutando para nos afastarmos da
obscuridade, da imobilidade, da calmaria.
No livro de Benoit: “Metafísica
da psicanálise”, ele diz: “Buscamos luz e movimento. Se necessário, aceitaremos
luz sem movimento ou até mesmo movimento sem a presença da luz. Mas não
toleramos imobilidade e
obscuridade.” E no entanto, trata-se de
nosso verdadeiro lar. É somente imobilidade e obscuridade do ponto de vista da
mente. Quando a pessoa entra, é pura serenidade. E a obscuridade tem sua luz própria porque você
é a luz. Tem seu próprio movimento
porque a luz não é somente um fenômeno morto, imóvel. É vibrante, cintilante,
dinâmico.
“A mente tem sede de conteúdo e variedade,
enquanto a Realidade é, para a mente, sem conteúdo e sem variações.” Uma pessoa
diz: “ Para mim isso parece a morte.” E Nisargadatta diz: “É onipresente e a
tudo conquista; intenso, além das palavras. Nenhuma mente ordinária pode
suportar a Realidade sem se fechar, tal como o obturador de uma máquina fotográfica.
Daí a necessidade de se praticar. Pureza do corpo e clareza da mente, não-violência
e desapego de si mesmo são essenciais para a sobrevivência de uma entidade
inteligente e espiritual.”
É interessante quando
alguém contempla essa questão de que a imagem que fazemos da morte é algo
obscuro e parado. Quando pensamos em uma pessoa morrendo, pensamos nela
entrando na obscuridade, na estagnação, no vazio, no vácuo. E quando nos
desfazemos de tudo que consideramos ser
nossas vidas, quando entramos dentro dessa condição que aparentemente é estagnada e obscura, ela se mostra como Nisargadatta
descreve: “ É onipresente e a tudo conquista; intenso, além das palavras.”
É
interessante quando ele diz: “Nenhuma mente ordinária pode suportar a Realidade
sem se fechar, tal como o obturador de uma máquina fotográfica.” O mesmo é dito
no Sutra do Lótus, na parábola do filho pródigo. Lembre-se: “Como o
filho de rica linhagem errando miserável pelo mundo.” Essa frase se refere à parábola do Sutra do Lótus. Esse jovem sai pelo mundo e gasta toda sua
herança e por acaso, em sua errância dentro da pobreza e desespero, chega às
terras de seu pai. E o pai diz a seu mordomo: “Dê àquele jovem as tarefas mais
insignificantes porque seu eu disser a ele ‘Você é meu filho’, ele vai sair
correndo e nunca mais vai voltar.” E isso é verdade. De tempos em tempos temos um gostinho daquilo
que é possível. A coisa se abre e se fecha. Quando nós encontramos a Realidade
incondicionada pela noção de si mesmo, não é raro que lembremos desse momento com
total horror. Essa é a historia do encontro de Moisés com Deus e o terror que
ele viveu.
Uma
pergunta é feita a Nisargadatta: “Há entidades dentro da Realidade?”
Nisargadata responde: “Identidade é Realidade. Realidade é identidade. A Realidade
não é uma massa disforme de caos sem palavras.” Às vezes temos a idéia de que
para irmos além da noção de si próprio, temos de ir além do pessoal, além do
individual. Nesse caso, a pessoa estaria entrando em um espaço sem dimensão.
Mas, quanto mais a pessoa penetra mais
intimamente o mistério de ser, mais a pessoa compreende que individualidade é a
natureza da existência na vida. Na opinião
dessa pessoa[9]
é por isso que a noção de Deus vem em primeiro lugar. O tipo de universo que nos é dado pela ciência
, um universo totalmente amorfo, aberto, sem constrangimentos... a pessoa não
encontra isso quando ela vai fundo. Ao contrário, ela encontra o sentido de
individualidade. O mundo é uma pessoa.
Nós não somos catapultados
da noção de si mesmo direto para o vácuo sem dimensão. Ao contrário, a pessoa
entra naquilo que pode ser chamado a suprema personalidade, a suprema noção de totalidade,
de unidade. E por isso, Nisargadatta
sublinha: “A Realidade não é uma massa disforme de caos sem palavras. É toda
poderosa, consciente, sem objeto, feliz.
É inteligente.”
Não é que o mundo seja
inteligente. O mundo é inteligência. A
idéia de que antes havia uma massa de matéria e que aconteceu que ela se
acumulou, tornando-se mais e mais complexa até que a vida e mais tarde a inteligência
emergiram. Essa é uma idéia totalmente equivocada. Equivocada quando penetramos
essa questão de um outro ponto de vista,
de um outro caminho.
Penetrar nessa questão de
dentro. Enxergar em termos do que é imediato, não daquilo que é refletido. Em
outas palavras, essa é uma maneira de se praticar zazen. A pessoa permanece com
aquilo que é imediato, que é dado agora. E se você permanece nisso, se você
trabalhar nisso e não virar-se e dizer: “Ah, é assim porque aprendi na
universidade que é assim”, etc., se a pessoa não aceitar as coisas assim como são
e questionar, dirigir-se para além delas.
Ir se aprofundando e compreender que a inteligência é a natureza das
coisas. É por isso que se nossa prática não
for inteligente e conduzida dentro da luz do ser, ela se torna uma prática
morta, um vácuo morto.
Outra pergunta: “Você fala do estado imutável. Minha pergunta é
simples; como você sabe que o Absoluto é
imutável?” Nisagardatta responde: “Somente
podemos pensar e falar daquilo que muda.
Aquilo que não muda só pode ser realizado no silêncio.” O imutável pode ser
realizado também no simples, no delicado, na sutileza. Nós não conseguimos pegá-lo,
segurá-lo, tomá-lo. Trata-se de refinar e refinar. E refinar até mesmo o
refinado. Trata-se de tornar-se simples, abandonando aquilo que não é essencial.
“Fique apenas com aquilo que é imediato,
aquilo que não é especulativo, que não vem do exterior, mas que é imediato. Uma
vez realizado, isso afetará profundamente aquilo
que é mutável, permanecendo, no entanto,
não afetado.”
[1] Esse teisho de autoria de Albert Low é classificado como nr. 1279 - abril 2012, pelo Centro Zen de Montreal, traduzido por Débora Bolsanello e revisado por Valéria Sattamini.
[2] A palavra « it » em inglês tem vários
significados e escolhemos traduzi-la nesse contexto como « isso ».
[3] A
palavra « it » em inglês denota também o sujeito de uma frase
que expressa fenômenos da natureza. Em um sentido literal poderíamos dizer :
« Isso está chovendo » (It is raining), mas em português, essa
expressão tem sujeito oculto (Está chovendo).
[4] Albert
Low alterna seu ensinamento entre « Quem sou eu » (Who am I?) e
« O que sou eu? » (What am I?).
[5] Klesa pode ser traduzido
por “ignorância”, “erro” ou “pecado”.
[6] O centro zen dirigido
por Albert Low é situado em Montreal, no Canadá.
[7] Albert Low faz uma distinção
entre « consciousness » e « awareness ». Em português, temos a palavra « consciência » que
traduz os dois. Para ser fiel ao texto de Albert Low, quando ele menciona
« awareness », traduzimos por « consciência sem objeto »;
quando ele se refere a « consciousness », traduzimos por
« consciência com objeto ».
[8] Albert Low viveu na Europa durante a II Guerra Mundial.
[9] Albert Low se refere a
ele mesmo.
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