Perceber e ser


TEISHO 5

PERCEBER  E  SER  [1]

Autor : Albert Low


Eu gostaria de continuar lendo e comentando Nisagardatta.

Uma pessoa pergunta: “Ouço de várias fontes que a liberação dos desejos e tendências é a primeira condição para a auto-realização, mas acho essa condição impossível de ser cumprida. A ignorância de si mesmo causa desejos e os desejos perpetuam a ignorância, o que configura um verdadeiro circulo vicioso.”

Essa libertação dos desejos… Claro que a pessoa traz isso do Cristianismo… que a pessoa tem de superar os desejos. Parece que também no Hinduísmo e Budismo, a pessoa tem essa necessidade constante de negar a si própria.

E o Maharaj[2]  responde: “Não há condições a serem cumpridas.”

Outra maneira de dizer a mesma coisa é que não há nada que precise ser feito. E este é o deveria ser o ponto de partida de nossa prática. É uma daquelas expressões que dissemos tantas vezes que é negligenciada. Uma das coisas interessantes é o quão facilmente substituímos a palavra ou a frase pela coisa. Gurdjieff disse em algum lugar que se escutamos e repetimos alguma coisa duas vezes então é verdade. Se escutamos a palavra duas vezes, então a palavra tem prioridade sobre o fato.

O que isso significa realmente? Não há nada que precise ser feito.  Nisargadatta diz: “Não há nada a ser feito. Nada para se desistir. Apenas olhe e lembre que tudo aquilo que você percebe não é você, nem seu. Agora isto é tudo que você percebe.”

Uma  das dificuldades mais frequentes na prática espiritual vem do fato de que guardamos a metade do campo, da consciência ou da experiência para nós mesmos e damos a outra metade para os outros, para o mundo. Você afirma: “Esta metade da experiência sou eu e aquela metade da experiência é o mundo.” E então, tentamos lidar com essa metade de experiência como sendo separada e nos perdemos na confusão de tentarmos nos encontrar dentro daquela experiência. Quando as pessoas estão trabalhando sobre a pergunta: “Quem sou eu ?”, estão sempre trocando de experiência e se você questioná-las, elas respondem: 
“Esta é a minha experiência, então, eu devo estar dentro dela em algum lugar.”

E uma das coisas que não podemos fazer intelectualmente é abrir mão desse sentimento de separação entre “isso é meu e isso é o mundo”. Qualquer coisa que você possa perceber não é você. Ou, falando de outro modo, tudo que você percebe é você.

Quando você vê uma parede, por que você não diz: EU SOU?  Por que você não diz EU SOU quando você vê carros, campos, céu, nuvens? Obviamente porque você pensa: “Isso não sou eu. Isso é o mundo. Isso é a existência e ela existe ai fora”.

Mas a raiva… “Eu estou com raiva. Eu estou cansado. Eu estou de saco cheio. Eu estou confuso.” Na sua cabeça, isto sim, é experiência.  Dividimos isto em existência e experiência.  A existência é objetiva. A experiência é subjetiva. Mas, tudo é experiência. A pessoa experimenta o sol, o céu, as nuvens, os campos, as casas da mesma forma como experimenta emoções, raiva, tristeza, dor.

Tudo isso é experiência e se você vai dizer que esta é a sua experiência, por que traçar limites?  Ou, se você vai dizer: “Está tudo lá fora?”  O céu, etc.… Então, seus pensamentos e sentimentos também estão lá fora. Eles também são algo.

Mas, você não é algo!

Veja através disso: Ou nós vemos somente a forma ou vemos somente o vazio. Nós não vemos que forma é vazio.

“Apenas olhe e lembre que tudo aquilo que você perceber não é você.”  E é claro que isso significa que aquele que está confuso, aquele que não sabe como praticar, aquele que está inseguro, isso também não é você. Mas, isso é você. Eu estou confuso. Eu aceito a ideia de que não sou a raiva, mas não aceito que eu estou confuso, ou eu sou eu, eu sou uma pessoa. 
É assim e ponto final!

Nisagardatta diz: “Tudo o que você percebe está no campo da consciência. Mas você não é o campo da consciência nem seu conteúdo”.

Você não é o campo da consciência nem seu conteúdo. Em outras palavras, se você está trabalhando sobre a questão: “Quem sou eu?”, que é exatamente a mesma pergunta: “O que é Mu?”, tudo o que vier à tona, permita que venha. Veja. Tome conhecimento e ao mesmo tempo, veja o que está vindo à tona como algo que está acontecendo. Quando você está olhando para a parede, você diz: “A parede é…”  Mas, ver a parede é algo que está acontecendo. Quando você sente dor, você diz: “A dor é…” Sentir a dor é algo que está acontecendo. Quando a pessoa é capaz de fazer isso, ela quebra o encanto da linguagem. A pessoa quebra o encanto da certeza de que há alguma coisa absoluta.

Henri Bergson diz: “Não é que as coisas mudem. As coisas são mudança.” As coisas são o que está acontecendo. Como diz Dogen no “Uji: O ser-tempo”[3]:  Tudo é tempo. Tudo está acontecendo. Não é que as coisas sejam. As coisas estão sendo.

Na tradição Vipassana, há uma prática na qual para tudo aquilo que emerge, a pessoa diz: “Isto também vai passar”. Às vezes, essa não é uma prática ruim, sobretudo se a pessoa está passando por um momento difícil. Tudo passa. Tudo se vai. Claro, essa é uma das coisas que mais tememos. Mais ainda quando nos sentimos envelhecer. O sentido afiado do tempo que passa afeta muita gente. Muitas pessoas, ao envelhecerem, sentem um tipo de luto, um tipo de tristeza sobre o tempo que vai passando. Ao passo que certos poderes ou habilidades vão se esvaindo e tenho de parar de fazer certas coisas porque não são mais apropriadas ou não tenho mais o físico ou a capacidade para fazê-las.

Este sentido aguçado do tempo que passa. Como você sabe, os japoneses eram particularmente sensíveis a esse tempo que passa. A maneira como eles observavam as flores do pessegueiro enquanto caíam eram um lembrete bem íntimo dessa verdade.

Mas há sempre dois lados. Há esse lado agudo do tempo que passa, mas sem essa mudança constante, sem que as coisas fossem transformadas, não haveria criatividade. Não haveria nada novo. Esse é um dos grandes medos que as pessoas têm por estarem encarceradas na prisão de seus conceitos. Há um sentimento de nada novo, de nada mudando, um sentimento estático da solidez da existência.

“Está lá no campo da consciência. Mas você não é o campo da consciência nem seu conteúdo. Você não é nem mesmo o conhecedor do campo.”

Isto é tão importante. Isto é o que dizemos, o que guardamos para nós mesmos.  Nós nos rendemos a tudo, mas pelo menos “eu sou o conhecedor”.  E é essa ilusão de ser o conhecedor que cria a ilusão de ser alguém. Às vezes, perguntamos às pessoas: quem entrou pela porta? Quem esta fazendo uma reverência?  E as pessoas procuram pelo conhecedor, por aquele que age, que são o mesmo. Eles olham na mesma direção, eles procuram por alguém.

Tem alguém que sabe. Alguém que anda. Alguém que faz algo. Alguém que reverencia.  Mas, existe alguém? Quando você esta trabalhando com  QUEM SOU EU, está implícito na maneira com a qual você trabalha que alguém esta trabalhando sobre esta questão. De tempos em tempos eu pergunto: É necessário que haja alguém? E não é raro que as pessoas respondam : “Claro que sim.  Claro que alguém está fazendo as coisas. Que bobagem perguntar isso! Claro que tem alguém fazendo isto ou aquilo.”

Mas será que tem alguém fazendo?

Você deve conhecer o haiku[4] : “Nenhuma pessoa anda nesse caminho nessa tardezinha de outono.”

Esse haiku deliberadamente enfraquece essa noção de alguém. Se a pessoa é capaz de penetrar nesse haiku, ela conhecerá a sensação de abertura, claridade e paz que o haiku consegue transmitir em poucas palavras.

Não há ninguém sentado no tam[5].Nenhuma pessoa fala. Claro, as pessoas começam a pensar em termos de negação. Eles ouvem o haiku: “Nenhuma pessoa anda nesse caminho nessa tardezinha de outono” e eles sentem como se não houvesse ninguém caminhando. Mas não é isso que o haiku quer dizer.  O poeta diz: “Quando ele anda no caminho, nenhuma pessoa anda nesse caminho nessa tardezinha de outono”.

Nem mesmo o conhecedor do campo. É a sua ideia de que você tem que fazer coisas que atrela você aos resultados dos seus esforços. E é essa liberação de nós mesmos deste alguém que está atrelado ao resultado de seus esforços, que é obviamente o foco de nossa prática espiritual.

O fato é que nós subestimamos tudo. Tudo se conforma à ideia do alguém. Toda essa noção de que somos responsáveis, por exemplo. Você deve ser responsável. E se alguém vai ser responsável, tem que haver alguém que seja responsável.

Na tradição cristã, esse alguém foi criado por Deus. Deus criou alguém, a alma. Por isso, eles afirmam que o aborto é algo errado. O aborto é errado porque se você se livra do feto, você esta se livrando de alguém.

A tradição cristã foca bastante nessa deificação do alguém. Esse alguém que vai para o paraíso ou para o inferno.  Esse alguém vai para algum lugar. Esta sacralização do alguém significa que quando nós, ocidentais, tivermos de lutar com isto, não estamos lutando apenas contra nossa tendência natural a gerar esse alguém, mas contra toda uma tradição social que o torna fixo para sempre como um fato.

No oriente, esse alguém é muito mais amorfo. No tradição budista, não há essa confirmaçao, essa sacralização, essa insistência no alguém. Isso não significa que não exista a mesma tendência em se criar o alguém.  Sim, ela existe, mas ela não é sancionada socialmente.

Há uma situação muito interessante vivida por Basho, um poeta muito sensível. Ele recém começava sua jornada em direção ao norte, quando encontrou um bebezinho abandonado na estrada chorando. Basho parou, escreveu um haiku sobre o bebê e seguiu seu caminho. Isto seria – do ponto de vista de um ocidental – um crime! E ainda assim foi possível para Basho agir desse modo porque ele não viu o bebê como um algo eterno.

Quando eu conto essa estória a outras pessoas, elas sempre reagem com grande indignação.  Ainda assim, temos de trabalhar com isto. Não para justificar o que Basho fez, mas para flexibilizar nosso próprio conceito do que significa ser alguém. O alguém não existe. Não existe esse alguém que vive no corpo. Não existe um fantasma dentro dessa máquina. E nosso questionamento é como podemos enxergar isto não como uma constatação intelectual, mas como uma verdade viva. Essa é a verdade que nos liberta.

Jesus disse: “Conheça a verdade e a verdade os libertará!”  E a verdade é que não há alguém. E isso não significa a ausência de alguém. Para termos ausência, temos de ter primeiramente uma pessoa.  E o haiku afirma: “nenhuma pessoa anda nesse caminho” mas não indica que houve, poderia ter havido ou que normalmente haveria.  Apenas “nenhuma pessoa anda nesse caminho”

Até Jesus disse: “Um grão de trigo que cai na terra estéril e morre, segue sozinho. Mas se ele cai em solo bom, engendra muitos frutos.” O que seria esse grão de trigo que tem de morrer?

O que é essa semente? O que é essa morte e ressureição? Há uma maneira de se ver a Paixão de Cristo como um teatro, uma metáfora do trabalho espiritual de cada um. Há quem diga que a crucificação do Cristo se sobrepôs a um ritual muito mais antigo que era a encenação da morte e da ressurreição. Mas o que é que morre e ressucita? No século XIX, nós éramos uma sociedade agrária e isso foi interpretado como sendo uma cerimônia agrária onde as pessoas estavam celebrando a morte e a ressurreiçao enquanto semeadura, colheita, primavera e tudo isso.

Mas, não. É necessário haver uma morte.  No zen budismo, para haver uma morte, tem de haver primeiro uma ressurreição. A ressurreição não segue a morte, ela precede a morte.  Enxergar a verdade de que não há nada a ser feito já é essa ressurreição.  Por isso repetimos constantemente: guarde no fundo de sua mente que “desde sempre, todos os seres  conscientes são Buda”[6].

Às vezes, tentamos fazer emergir a consciência, o saber. Às vezes, tentamos fazer você reconhecer que estamos constantemente negligenciando o ato de conhecer. E é exatamente esse ato de conhecer que é o espelho onde se dá o reflexo daquilo que está acontecendo. É o espelho que reflete aquilo que chamamos nossa experiência e nossa existência. Mas, nós constantemente negligenciamos o espelho. Nós ignoramos a verdade de que não há nada que precise ser feito.  Ignoramos a verdade de que: “Nenhuma pessoa anda nesse caminho nessa tardezinha de outono” e por isso estamos sempre lidando com uma parte da verdade. 

Mas, uma parte da verdade não é a verdade.

Nisargadatta diz: “O motivo, o desejo, o fracasso em alcançar, o sentimento de frustração: tudo isso impede você de avançar.”

O motivo, o desejo, o fracasso em alcançar, o sentimento de frustração… você entende? Tudo isso emerge porque EU tenho que fazê-lo. Eu tenho que fazê-lo porque se eu não faço nada, nada será feito. Eu tenho que ter uma razão para fazê-lo. Se eu não tiver uma razão, porque eu deveria fazê-lo?

Então, eu arranjo algo que eu realmente quero. Como, por exemplo, a iluminação. Eu desejo a iluminação, o despertar. E então, porque EU  tenho de  fazer acontecer e porque eu não vejo como fazê-lo, começo a me sentir um fracasso. E  mais adiante, me sinto frustrado e digo: “Ah, essa coisa de zen é tudo uma bobagem. Não existe essa tal de iluminação. Eu tentei e parece que a coisa não funciona. Vou tentar outra coisa.”

Essa sucessão de estados acontece porque alguém tem de agir, alguém tem que fazer reverências, alguém tem que andar, alguém tem que falar. Hoje em dia está mais na moda dizer que não há fantasma dentro da máquina e que somos somente a maquinária ou moléculas dançantes, coisas do gênero. Isto não é o que estamos dizendo aqui de forma alguma.

Não estamos afirmando que não existe esse alguém que faz reverências porque você é um robô programado para começar a fazer reverências quando vê um outro alguém sentado em um zafu[7]!

É algo muito mais maravilhoso que isso! A verdade é algo tão maravilhoso! Por isso é tão triste que nós nos acorrentemos dentro desse pequeno alguém. Dizemos que um milionário é pobre… porque se ele não tivesse o milhão, ele teria o mundo inteiro.

Nisargadatta diz: “Simplesmente esteja presente a tudo que acontece. E saiba que você esta além disso.”

Você vê? O problema é que nossa linguagem nos amarra. As “pessoas zen” diriam: “Bem, você diz que não há ninguém e agora está dizendo que existe um alguém além daquilo que  está acontecendo.”

Não... Não é assim. O EU SOU não é alguém. EU SOU é conhecer. EU SOU não tem fronteiras, não tem base nem forma.  É o que ignoramos, é aquilo ao que damos as costas. E ignoramos isto dizendo EU SOU ISTO OU AQUILO.

Portanto, EU SOU  é a verdade. E EU SOU ISSO OU AQUILO deixa a verdade escapar. É meia verdade. É uma experiência.

A pessoa pergunta a Nisargadatta: “Isto significa que eu deva me abster de fazer tudo e qualquer coisa?” Você está vendo? O EU está de volta. EU não posso agir, então por isso, EU não agirei. Ainda é o mesmo EU.  Como você vai contra a correnteza disso?  Não fique frustrado porque aquele alguém é a própria correnteza contra a qual devemos seguir. Não diga: “É demais. Não entendo.”  É disso que estamos falando. Estamos falando daquele que faz reverências, daquele que fala e anda. Aquele alguém que, quando olhamos bem de pertinho, não existe.

Nisargadatta diz: “Você não pode. O que deve acontecer, deve acontecer. Se você parar bruscamete, você vai se estraçalhar.”

Isso é verdade, mas não é o ponto. Quer você faça ou não faça algo, ainda  assim é VOCÊ e o EU – esse fantasma imaginário dentro da máquina – que está fazendo. Nós já falamos dessa autolimitação, um tipo de gnose. Falamos de autorreflexão. Falamos sobre o redemoinho. Em outras palavras, não se trata de uma ideia insípida “esse alguém”, mas isso tudo sai de dentro daquilo que você é. É uma criação que emerge de você, daquilo que você é essencialmente.  Claro, é uma criação primária, muito básica, mas é uma criação.

É como a criação de Frankenstein. Ela assumiu o controle, se excedeu, passou do ponto. Ao invés de estar a serviço, como deveria ser, ela toma conta da casa e se autoproclama o proprietário. A luta é exatamente esta: manter o EU no seu devido lugar enquanto nos livramos do EU. Esse é o truque que estamos tentando aplicar e nos vemos frustrados. Acreditamos que temos de nos levantar puxando-nos pelos laços dos sapatos. Mas não precisamos fazer isso.

Sente-se com olhos abertos em contemplação. O que é isso? O que é que fala quando eu falo?  Por que é isso que fala? Onde isso está  situado? Como isso é sentido? Quais são suas características? Como sei que é EU? O que ele é?  E por aí vamos…

A pessoa investiga isso do mesmo modo como alguém observa uma nova espécie através de um microscópio. Você não a olha já tendo ideias prontas: “Não vou fazer isso ou aquilo. Isso é confuso demais”, ou “Acho que agora entendi sobre o que é tudo isso”, ou ainda “Estou na dúvida se essa pratica é mesmo para mim”. Em todos estes discursos, a pessoa coloca o fantasma de volta dentro da máquina.

Nossa pratica é mais do tipo “como expulsamos do canto a fada que não está sentada lá?”

A pessoa pergunta: “É uma questão de aquilo que é conhecido e o conhecedor se tornarem UM?”

Esse tipo de pergunta é bem famosa, não é? É do Krishnamurti[8], não é?

 

Nisargadatta responde: “Ambos são ideias na mente e palavras que as expressam. Não há SER nelas.” No ocultismo ocidental, fala-se de casamento dos opostos e Jung escreveu um livro bastante volumoso sobre isso, com um titulo impronunciável, algo como Mysterium conjiunctionis.

 

Quase sempre as pessoas sentem que é isso. Isto é uma fusão. Isto é uma união entre o que está dentro e o que está fora, entre o conhecedor e o conhecido, entre o self e o não-self. Mas isso é impossível porque, quando criamos o self, o criamos através da rejeição ao não-self.

 

 A época em que o self surge, ou ao menos quando as bases do self são lançadas é quando uma criança faz dois anos. A idade de dois anos caracteriza-se pelo uso frequente da palavra NÃO.

 

Em outras palavras, a criança esta fazendo distinções. A palavra NÃO é um separador, fazendo uma distinção entre o self daquela criança, os pais e o ambiente. E não pode haver casamento de opostos, pois os opostos se definem por serem diferentes. O self não está nem entre nem além. O self não é nem o conhecedor nem o conhecido. Não está entre os dois nem além dos dois.

É fútil se enxergar isso do ponto de vista do mental. Então, o que é o EU?  O que é você? Se você não é alguém, quem é você? Se Mu não é algo, o que é? Não se trata de uma pergunta acadêmica. O medo da morte  é um dos medos que realmente envolve a maior parte das pessoas.  Somente quando as pessoas se tornam uma entidade anônima, um algo anônimo podem dizer que não têm medo da morte.

Isso não quer dizer que todo mundo tenha a morte os ameaçando todo o tempo, embora algumas pessoas se sintam assim.

Mas quer dizer que de de vez em quando uma dor aguda ou crônica, ou a dor lancinante de um câncer ou um ataque cardíaco pode abalar a mente da pessoa.

Então, o que  é você? Enquanto houver um alguém, um algo, ele sem duvida nasceu e terá que morrer. É como dizemos: tudo está passando. A pergunta: “O que é você ?” não é uma pergunta acadêmica, de jeito nenhum. E é como você responde a essa pergunta que determina como você vai viver sua vida.

Nisargadatta diz: “Pare de procurar. E veja que é aqui e agora. É o EU SOU que você conhece tão bem.”

Você o  conhece tão bem porque você virou as costas para ele. E por ter lhe dado as costas, ele parece ser um monstro. Parece ser uma grande fenda escancarada, uma selvagem mandíbula aberta que engolirá você. Essa noção incipiente de insegurança que persegue tanta gente, essa noção fragmentada de ser é EU SOU.

“Tudo o que você precisa fazer é parar de achar que você está dentro do campo de consciência.”

Como você faz isso?  Como você para de achar que está dentro do campo de consciência ou no campo da experiência?  Você não pode simplesmente olhar numa direção correnteza acima.

Se você não está  dentro do campo da experiência, o que é você, então? Diz-se que a iluminação não é uma experiência. É uma mudança na maneira que você vive a experiência. O que é essa mudança?  O que está faltando agora que não está faltando mais? Ao que é que você realmente virou as costas? É tão óbvio. Está encarando você o tempo todo. É dito nos monastérios japoneses: “Olhe embaixo de seus pés!” ou “Está bem diante de seu nariz!” 

É muito, muito mais íntimo do que isso!  Do quê você está sentindo falta?

“A menos que você já tenha cuidadosamente levado em consideração esses assuntos, me ouvir uma só vez não dará em nada.”

Você sabe, isso é tão verdadeiro, não é? Você já escutou isso várias vezes. E dúzias de maneiras diferentes, mas sempre volta à mesma coisa.

“Esqueça suas atividades e conquistas passadas. Fique de pé nu, exposto às chuvas e ventos da vida. E você terá uma chance.”

Fique de pé nu, exposto às chuvas e ventos da vida. O que são as chuvas e ventos da vida? Simplesmente a constante negação do self.  Porque o self é ilusório, ele tem sido constantemente negado por você e pela existência. É por isso que a vida é tão insatisfatória. O sentimento de que há algo faltando, desajustado.

Algo que deveria ser não está lá ou um sentimento de ser ludibriado pelo mundo ou pelos outros. A frustração e tudo o mais. Tudo isso vem da convicção de ser alguém. E é somente você que pode desfazer essa convicção. E desfazer essa convicção é ver a natureza ilusória daquilo ao qual você se apega tão preciosamente. O melhor momento para ver isso é quando a noção de EU está no seu ponto mais fraco. Em outras palavras, quando a situação é mais dolorosa.

“Fique de pé nu, exposto às chuvas e ventos da vida. E você terá uma chance.”



[1] O presente teisho é classificado pelo no. 740, em 3 de julho de 2000, pelo Centre Zen de Montréal, traduzido por Débora Bolsanello e revisado por Valéria Sattamini. 
[2] Low refere-se à Nisargadatta Maharaj. O titulo Maharaj significa grande rei.
[3] Uji é um ensaio sobre o tempo, escrito durante o inverno de 1240 pelo patriarca Dogen, que na época tinha 41 anos e vivia nos subúrbios de Kyoto, Japão. 
[4]  Haiku é um termo japonês criado pelo poeta Masaoka Shiki (1867-1902) e indica uma forma de poesia cuja origem é atribuída ao poeta Bashō Matsuo (1644-1694). Também conhecido como Haikai, esse tipo de poesia caracteriza-se por uma forma concisa que evoca a efemeridade da vida.
[5] Tam é uma plataforma de madeira sobre a qual são colocadas as almofadas para meditação.
[6] Parte do poema de Hakuin Ekaku , intitulado “A canção do zazen”: “Desde sempre, todos os seres são Budas. Como a água e o gelo, não há gelo sem água. Fora de nós, não há Budas (…)”.
[7] Zafu é uma almofada de meditação.
[8] Jiddu Krishnamurti é um filósofo hindu nascido em Madanapalle em 11 de maio de 1895 e falecido na Califórnia em 17 de fevereiro de 1986. Teve notável influência no movimento de contracultura dos anos 60, trazendo questões espirituais para as cabeças pensantes ocidentais. 

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