O Eu é real ?


TEISHO 4

O  EU  É  REAL? [1]

Autor : Albert Low

Gostaríamos de continuar lendo e comentando Nisagardatta. Uma pessoa pergunta a ele: “A noção EU SOU é real ou falsa? Esse sentimento EU SOU, ele é real ou não?”. Nisargadatta responde: “Ambos. Ele é falso quando dizemos EU SOU ISSO OU EU SOU AQUILO e ele é verdadeiro quando dizemos: EU NÃO SOU ISSO NEM AQUILO”.

Esse é o nó do caso. Há pessoas que aprenderam que o EU não existe; que o EU verdadeiro é o não-EU e daí  tiram a conclusão de que trata-se de uma ausência do EU. Quando leio Krishnamurti, sempre tenho a impressão que é exatamente isso que ele pensa – talvez eu o esteja julgando incorretamente – mas parece que em seus ensinamentos o EU não existe, isso significando que literalmente o EU NÃO EXISTE. Claro, isso nos encaminha para um sentimento de absurdo.

Há um livro de Gurdjieff[2] – ele escreveu três livros – cujo titulo é interessante: A vida é real somente quando EU SOU. Esse é somente o título, não é o livro todo...

A vida é real somente quando EU SOU. Gurdjieff costumava discursar sobre o `Homem` com aspas.  Nesse caso, ele se refere ao ser humano. Uma “pessoa com aspas” é um fantasma, um pseudo-homem, uma pseudopessoa.  Gurdjieff nos dá uma descrição curiosa da pessoa média, ele diz que se parece com o cavalo que puxa uma diligência.  Antigamente, tínhamos carruagens ou diligências puxadas por cavalos. Gurdjieff diz: “O cavalo está no puro osso e lavado de cansaço; a carruagem está toda quebrada; o condutor meio bêbado e o dono da carruagem… sempre ausente”.

Trata-se dessa ausência do dono. Gurdjieff diz: “Fulano e Cicrano não estão em casa”. Na verdade, muito pouca gente está em casa.  A maioria está ausente. Alguns contos de fada falam de um empregado  tomando o poder e dirigindo a propriedade, visto que o dono está mergulhado no sono. Essa metáfora aponta para a situação na qual nós – pessoas médias –  nos encontramos.  Nós estamos dormindo. A única resposta para as questões do ser humano é : temos de acordar ! Não há outra maneira de acordar a não ser acordando ! Tudo mais é realizado dentro de um sonho.

É esse sonho que EU SOU.  Devemos investigar o sonho EU SOU UM HOMEM, SOU UMA PESSOA. Temos de acordar para o fato de que isso é um sonho.  Não se trata de despertar em outro tipo de consciência ou outro tipo de mundo. Há muita falta de compreensão nisso.  As pessoas falam de acordar ou despertar. Frequentemente as pessoas sonham que se trata de um outro tipo de supraconsciência, um despertar para um eu além do eu, para uma consciência superior. Não !

Trata-se de acordar para o fato de que é um sonho[3].

É nesse sentido que Nisargadatta afirma que EU SOU é ao mesmo tempo real e falso.  Até mesmo enquanto sonho, é real. Essa é  a parte mais difícil de entender, porque o sonho é real enquanto estamos sonhando. E quando escutamos as pessoas dizerem: “É um sonho!”, nós continuamos sonhando. Nós incorporamos aquela afirmação no sonho.


E podemos fazer todo tipo de práticas espirituais, encontrar com mestres, ler livros sagrados, tudo isso como parte do sonho. Na verdade, muito do que é chamado de atividade espiritual serve apenas para garantir que o sonho continue sem interrupção.

É ao mesmo tempo real e falso. É falso quando dizemos EU SOU ISSO OU AQUILO.  É por isso que dizemos que você tem que investigar. Você tem que se perguntar com toda honestidade: o que é que você está sonhando que você é?  Não é bom assumir como verdade o que Nisagardatta, Buda e todos os outros estão falando: “Eu não sou nada”. Isso seria continuar sonhando.  Agora, a pessoa está sonhando o sonho de Nisargadatta ou o sonho de Buda.

Mas, o que é isso que você sente que você é? Seja honesto com você mesmo, lute para descobrir.  Aquilo que você pensa que você é não é algo claro e definido, uma série de pensamentos definidos, nem mesmo uma série de sentimentos claros e definidos. Se parece mais com um monstro feito de pedacinhos disso e pedacinhos daquilo.

Mas, a pessoa da uma noção global de ser isso: “Eu sou isso”. E é aí que você começa a investigar.  Mas, se você afirma que “o eu verdadeiro é o não-eu”, então o que não-eu significa em termos da expressão: não-eu?

Claro, você pode passar uma eternidade sem nenhum tipo de  valor real.

Nisagardatta diz: “O conhecedor (aquele que conhece) aparece e desaparece com o conhecido (aquilo que é conhecido).  Mas, é eterno aquilo que sabe que não sabe, aquilo que é livre de memória e noção de antecipação”.

“O conhecedor aparece e desaparece com o conhecido.” De novo temos um problema, porque muitos dentre nós separam o conhecedor do conhecido. Eles afirmam que o conhecido está lá, separado. Sim, eu posso acreditar que o conhecido seja um sonho. Mas… que o conhecedor seja um sonho…  Eu não posso aceitar isso!

O problema é a noção do subjetivo, a noção de que existe um  EU oposto ao objeto.

Repito: não devemos cometer o erro de identificarmos o conhecido e o conhecedor como sendo o mesmo. O conhecedor é o lado de dentro. O conhecido é o lado de fora.

Às vezes, fazemos a apologia da xícara. A mente é o interior da xícara. O corpo é o exterior. E então, temos a xícara. Não se pode dizer que a xícara é o interior ou o exterior. Não se pode dizer que trata-se do conhecedor ou do conhecido.

E Nisargadatta continua: “Mas, é eterno aquilo que sabe que não sabe, aquilo que é livre de memória e noção de antecipação”.

Falamos do não-eu, da nenhuma-coisa. É isso que está em jogo aqui: “Aquilo que sabe que não sabe”.

No budismo, falamos de vários tipos de cegueira. Há a cegueira da pessoa que não tem olhos.  Há a cegueira  da pessoa que está totalmente envolvida com seus preconceitos e opiniões.  Mas também há a cegueira da pessoa que acabou de despertar. Não é raro que ela esteja cega pelo vazio. E tem ainda a cegueira de Buda. O não-ver de Buda.

O que é esse não-ver de Buda?  É como se fosse o revés de uma foto. Nós somente conhecemos a parte da frente da foto. Mas, sem a parte de trás, não é possível haver foto. Esse não-ver de Buda, esse não-saber de Buda é a base de todo o conhecimento.

Lembre-se que o Imperador Wu perguntou a Bodidarma: “Você é iluminado?” E Bodidarma respondeu: “Eu não sei”.  Esse é um não sei diferente do não sei de Sócrates.  Sócrates costumava dizer que ele era o homem mais sábio pois sabia que não sabia.  Mas esse não saber socrático não é o mesmo não saber de Buda.

Tudo emerge do não-saber de Buda. É por isso que quando você está trabalhando sobre “Quem sou eu?” ou “Mu[4]”, você chega a um ponto de total impenetrabilidade. O problema é que você pensa que tem que expandir seus atuais conhecimentos até que seus conhecimentos incorporem o conhecimento de quem sou eu. Você pensa que há continuidade.

E quando você chega a essa parede impenetrável, essa parede negra, então... é impossível avançar.  Então, você recua e diz: “Ah, lógico que essa não é a direção correta”. E aí procura novamente por alguma maneira de estender seus conhecimentos até que eles incorporem a solução de sua pergunta ou de seu koan[5].

Você acha que o problema é que seu conhecimento é limitado. Mas, seu conhecimento está é de cabeça para baixo!  Há um salto que tem de ser dado ! Há um hiato que tem de ser transposto ! Trata-se de uma condição  de descontinuidade !

Descontinuidade. Em sânscrito, isso é chamado “parariti”. Suzuki traduziu como: “uma reviravolta catastrófica”.   Tradução horrível, horrível ! Mas, o aspecto catastrófico tem algum mérito.  Hakuin fala sobre estilhaçamento. A mente é estilhaçada. O problema com essas traduções é que elas têm um tom violento.

Não se trata de um estado de continuidade. É somente quando você chega a esse muro impenetrável e trabalha nesse muro impenetrável que essa reviravolta, esse hiato, esse salto pode acontecer.  É um salto do saber à fonte do saber. Podemos chamar essa fonte de não-saber.

Os alquimistas dizem: “Nosso sol é um sol negro”. Você tem que penetrar na própria natureza do saber.  Você tem de penetrar na própria natureza do Eu sou, porque saber é Eu souSaber já é Eu sou.  Nós verbalizamos isso, mas verbalizar não é necessário. Saber não é abstrato. Saber não é impessoal: é VOCÊ no seu estado mais íntimo, mais direto possível.

Você tenta chegar ao Eu sou vindo de fora.  Do mesmo modo, você tenta  chegar a Mu vindo de fora. Não é raro que as pessoas falem de seus koans de um ponto e vista externo, tratando dele como se fosse algo que tivesse de ser resolvido, ao invés de ser a total expressão delas próprias. Mu é a total expressão de você mesmo. Eu sou é a total expressão aquilo que você é.

Como diz Dogen: “A pessoa iluminada não sabe que ela é iluminada”. Você deve entender claramente o que esse não-saber realmente é.  Não se trata do não-saber ignorante. A pessoa comum não sabe que ela é iluminada. Ela não sabe porque ela virou as costas para sua natureza verdadeira. Ela não sabe que é iluminada porque ela pensa que ela é alguém, alguma coisa. Mas, a pessoa iluminada não sabe que é iluminada da mesma forma que fogo não pode queimar  fogo.

E então, vem a pergunta: “O EU SOU  é em si uma testemunha ou eles são separados?”.

Falando de modo geral, preferimos usar a palavra presença ao invés da palavra testemunha

Mas, mesmo assim, admitimos que a palavra testemunha é uma palavra bem escolhida aqui nesse contexto, pois ela se origina de termos do inglês antigo como: bruxo, mago, sábio[6]. 

A raiz de todos esses termos é wicca, uma palavra anglo-saxônica antiga que significa conhecer.  A bruxa, o  mago, o sábio, todos eles eram buscadores, visionários, pessoas de saber.

Foi somente quando o cristianismo foi estabelecido e que a religião druídica foi suprimida, as bruxas e magos se tornaram maus diante do domínio da religião `oficial`.   Mas, na verdade, eles eram gnósticos buscando o conhecimento direto da verdade.

E podemos dizer que a testemunha é uma qualidade especial de saber. Nós preferimos falar de presença.  De novo a pergunta: “O EU SOU  é em si uma testemunha ou eles estão separados?”. Em outras palavras: “EU SOU é presença ou não?”. Nisargadatta responde: “Sem um, o outro não pode ser. E ainda assim, eles não são um. Como a flor e sua cor. Sem flor, não há cor. Sem cor, a flor permanece invisível”.

Conhecer e EU SOU. Eles são UM, são o mesmo. Mas, ao mesmo  tempo, conhecer é a substância e EU SOU é a forma.  Há um dito hindu: “Vês o cão e não vês a rocha. Vês a rocha e não vês o cão”. Se você olhar para uma linda escultura de um cachorro feita em uma pedra, você admira a rocha e nesse caso, não vê o cachorro esculpido. Ou, você admira o cachorro esculpido e perde de vista a rocha. Mas, os dois são inseparáveis. Conhecer já é EU SOU.

Nisargadatta diz: “Além está a luz que, em contato com a flor, cria a cor. Realize que a sua natureza verdadeira é somente de pura luz. Tanto aquilo que é percebido quando aquele que percebe as coisas vêm e vão juntos”.

Sua reação à situação é parte da situação. Aquilo que é percebido e a reação daquele que percebe é sempre uma reação. Na percepção sempre há reação. Você tem  aquele que percebe, a reação e a situação. Eles formam um todo. Não é uma totalidade homogênea. Não estamos afirmando que eles são uma mesma coisa.
Quando você olha para seu entorno, quando você olha para o zendo[7], há o ato de olhar e há aquilo que é olhado. E isso é uma situação só.  Mas o ato de olhar e aquilo que é olhado não são a mesma coisa. É exatamente isso que dá a impressão de dualidade. É porque o ato de olhar e aquilo que é olhado não são a mesma coisa que o denominamos sujeito e objeto.  Mas de outro lado, pelo fato deles dois serem manifestação da luz, eles não são duas coisas separadas. E você é a luz.

Aquele que percebe é a forma que a luz toma exatamente do mesmo modo que aquilo que é percebido é a forma que a luz toma.

O uso da palavra luz não é um uso poético. Luz é o que há de mais próximo que uma pessoa pode chegar da natureza verdadeira. É fascinante constatar que encontramos o uso da palavra luz em todas as religiões do mundo, quando se refere ao que chamamos de natureza verdadeira.

Nisargadatta diz: “Além está a luz que, em contato com a flor, cria a cor.” Há a presença, há o Eu sou. Mas além deles dois, há luz.  Essa luz que você é. Onde quer que você esteja, essa luz está.

Enquanto você esta sentado aí nesse momento, há luz. E o sol toma sua luz dessa luz. É isso que nos Salmos da Bíblia é chamado de “luz das luzes”.  Até mesmo na escuridão, a luz está brilhando.

Uma das maneiras de se trabalhar sobre a questão QUEM SOU EU é ver diretamente que é real aonde quer que você esteja. Há no lugar onde você se encontra uma realidade que outros lugares não têm. Esse zendo tem uma realidade que sua casa não tem nesse momento. Esse zendo tem uma realidade que a sala de jantar da casa não tem nesse momento. Mas, dentro de alguns minutos, você estará na sala de jantar e ela será real de um modo que  o zendo não será. Esse é o milagre do ser. E esse milagre é totalmente negligenciado. Mas, esse milagre é tudo.

É como a luz do dia. Você observa o zendo  e você verá almofadas, paredes, o chão e tudo mais. Você não verá a luz do dia. Mas, por outro lado, tudo o que você pode ver é a luz do dia. Do mesmo modo, você vê as almofadas, o chão, etc., mas você não vê a si mesmo. E na verdade, tudo o que você pode ver é você.

“Realize que a sua natureza verdadeira é somente de pura luz. Tanto aquilo que é percebido quando aquele que percebe as coisas vêm e vão juntos.”

Sua verdadeira natureza é aquilo que torna ambos possíveis e ao mesmo tempo não é nenhum dos dois. Significa não-ser isso ou aquilo, mas pura consciência de ser e não-ser.  Pura consciência.

É surpreendente constatar que os cientistas – e isso inclui psicólogos, pessoas que estão estudando o comportamento e a mente – negam a existência da consciência.

Vale a pena pensar sobre isso. Como é possível que alguém possa negar a presença da consciência quando tudo está banhado nela? Isso demonstra o quão adormecida está a humanidade. O quão imersa em um esquema de coisas, estrutura de conceitos, idéias, teorias e crenças. Totalmente aprisionada nisso tudo a ponto de não enxergar aquilo através do qual ela enxerga. Você olha através dessa luz o tempo todo e ainda está se perguntando: “O que sou eu?”, “Quem sou eu?”, “O que é Mu?”, “O quê é real?”. Você está imerso na consciência. Você não tem que procurar em nenhum lugar. O ato de olhar já é o que você está procurando.

“Quando a consciência se volta para si mesma, o sentimento é de não-saber. Quando ela se volta para fora, as coisas conhecidas vêm à existência.”

A consciência se volta para si mesma de duas maneiras: uma delas é se conscientizar de se estar consciente. De alguma forma, é disso que estamos conscientes sempre: da consciência modificada pela percepção. Consciência que é modificada pela sala. Aí, entra o que eu disse:  essa sala é somente a sua luz, da mesma forma que as cores dessa sala são luz do dia.

Então, tudo dentro da sala é consciência. Consciência que foi modificada pelas coisas. E aí, você se torna consciente da sala. Você seleciona ver uma almofada ou ver o altar ou uma pessoa. E esse processo de seleção acontece através de uma outra qualidade da consciência. A primeira podemos dizer que é consciência enquanto sala. E a segunda é consciência da sala.

Tudo de que você sempre esteve consciente é consciência da consciência enquanto sala. Ou consciência enquanto pessoa. Consciência enquanto livro ou cinema.

E essa consciência é UM, não dois. Consciência é consciência. Consciência é luz. Não é tão diferente da imagem holográfica que você conhece: há uma luz direta, um raio laser. Ele se divide. Uma parte dele ricocheteia em um objeto e a outra parte continua se propagando de modo linear. E então, a primeira parte que ricocheteou no objeto  bate na segunda parte que se propagou de modo linear. É dito que isso causa um padrão de interferência. 

Mas, é tudo luz. É interferência dentro da luz. É luz interferindo com luz. E todo o mundo é consciência interferindo com consciência.

É por isso que podemos dizer que é um sonho.

Mas há também a outra maneira pela qual a consciência se volta para si e isso é quando você pergunta: “Quem sou eu?” ou “O que é Mu?”  Nesse caso, não se trata de consciência da consciência. Não é bom meditar estando consciente da consciência. Isso equivale a chegar, vindo de um ponto de vista exterior: aí você já está fora da verdade. Agora, você tem de se voltar para dentro. Isso é  parariti, o salto.

E se você persistir com esse salto, então há uma espécie de explosão. É essa explosão que é chamada kensho, satori ou despertar. Mas o essencial é que a virada se dá porque a pessoa está trabalhando de dentro da consciência e não mais voltando a consciência para si mesma como um objeto a ser visto.

Você tem de entrar dentro de sua prática. Você tem que entrar dentro de Mu. E aí, você emerge de dentro de Mu. Não de fora. Se você escuta um passarinho cantando, você pode escutá-lo como um passarinho cantando. Em outras palavras, você pode escutá-lo como uma coisa que está acontecendo ou você pode escutá-lo de dentro, e nesse caso, você é a canção do passarinho. Do mesmo modo; você pode sentir uma dor. Você pode sentir como algo que está acontecendo a você. Ou você pode senti-la de dentro e nesse caso, você é a dor. Ou, você pode se sentir ansioso e ver isso como algo acontecendo a você. Mas, você pode também senti-lo de dentro e nesse caso, você é a ansiedade.

Quando você está acompanhando a respiração, você deve acompanhar a respiração. Você deve se tornar um com a respiração. Ser um com a respiração.

Todas essas palavras são apenas indicadores.

Quando você está dentro da consciência, totalmente dentro do EU SOU, é aí que você tem a possibilidade de sair da parede impenetrável de tijolos da qual falamos. Estamos presos na parede. O mesmo se dá quando estamos acompanhando a respiração ou Mu ou Quem sou eu?. Não há diferença entre essas práticas.

A pessoa está colocada em uma situação que Hakuin descreve como um rato em um tubo de bambu: ele não consegue nem ir para frente, nem ir para trás e nem ficar onde está. Mas, nessa condição, não há consciência dessa condição. Há é somente consciência da impenetrabilidade. E se podemos tornar isso  mais e mais sutil como se estivesse furando a escuridão com escuridão. Obscuridade com obscuridade. Quase que como furando a escuridão com uma agulha de escuridão.

“Dizer que nos conhecemos é uma contradição, pois aquilo que é conhecido não pode ser EU.” Sempre repetimos isso. Qualquer coisa que venha a você, não importa qual seja, distinga. Discernimento. Não, você não precisa repetir como um mantra: “Não é isso, não é isso, não é isso.” Não estamos falando de uma prática de neti-neti[8].

Mas, enquanto você está meditando, permita que tudo venha a você: pensamentos, sentimentos, emoções, memórias, o que for. Você permite que venha. E aí, você discerne. Pelo processo de discernimento, a pessoa distingue que há o ato de conhecer e aquilo que é conhecido. Isso não significa que eles estão separados mas que a pessoa distingue que eles não são a mesma coisa.

É como quando olhamos um espelho. Você não vê o espelho, você vê seu reflexo, seu rosto. Mas, então é possível que você mude a maneira de olhar o espelho. Há uma maneira diferente de olhar o espelho de forma que você vê o espelho enquanto espelho. E o reflexo – embora ainda esteja lá – não é visto do mesmo modo. Isso significa que há uma diferença em sua maneira de olhar.

Exatamente do mesmo modo há uma memória que emerge. É possível mudar a maneira com a qual você vê a memória. De um lado, você a vê como estando identificado com ela: como minha memória, algo que ocorreu a mim no passado.  Nessa perspectiva, o EU é um ingrediente essencial. Mas, mudar de percepção significa reduzir ou anular a noção de que sou EU que está sendo percebido. E tudo o que é visto é a memória em si.

Do mesmo modo, quando uma pessoa está olhando para o reflexo no espelho, a pessoa deixa de lado essa pressuposição e aí pode ver o espelho. A pergunta é a seguinte: “Se o EU é para sempre o desconhecido, o que então é realizado quando uma pessoa se ilumina?”

Muitas pessoas perguntam: “Você  despertou para si? Você se conhece?” Eles colocam o você na frente! Devemos ir além ! Mas, o que é realizado quando alguém se ilumina, se o EU é irreal?

Nisargadatta diz: “Saber que aquilo que é conhecido não pode ser eu nem meu já é liberação suficiente.”

É um momento de intensa alegria quando este primeiro verdadeiro discernimento é feito. Quando a pessoa é capaz de ver o reflexo no espelho não como sendo o espelho. Mas isso ainda não é o kensho[9]. A pessoa tem apenas um gostinho do kensho. Um gostinho da pura consciência. E sem dúvida alguns de vocês – senão todos – já tiveram essa prévia. Uma das coisas que traz a pessoa de volta aos retiros de novo e de novo é o sutil gosto da pura consciência.

E esse gosto é tão maravilhoso, tão certo, tão perfeito, que a pessoa fica aberta a dar sua própria vida para poder experimentar isso novamente.

“Saber que aquilo que é conhecido não pode ser eu nem meu.” Uma vez que você enxerga através disso, você enxerga através de tudo.  Ainda que seja somente um gostinho na pontinha da língua, só por esse momento fugidio de discernimento entre o reflexo e o espelho, a pessoa questiona a noção de que o mundo é real. Nesse momento, somos obrigados a revisar todos os nossos conceitos, tudo se torna questionável.

É por isso que pode acontecer da pessoa ter essa percepção, uma percepção efêmera, talvez. É como um choque elétrico e depois disso, a pessoa pode cair em um estado de depressão e ansiedade. Porque a pessoa sacudiu tudo: sua própria fundação, sua própria base.  Não é raro que pessoas que estejam trabalhando sobre “Quem sou eu?” ou “Mu?” passem por isso, momentos de muito medo. Parece que o mundo está ruindo. Invariavelmente isso ocorre por que elas tiveram alguma percepção – pequena que seja – que do que é a Verdade. E provavelmente há milhões, senão centenas de milhões de pessoas que estão consumindo tranquilizantes e que, na verdade, estão simplesmente sofrendo do choque da realidade.

Nisagardatta diz: “Liberar-se da identificação com o EU, com memórias e hábitos; o estado de deslumbramento face à ‘infinitude’ do ser, sua criatividade e transcendência; a coragem absoluta que nasce da realização de que cada nível de consciência é ilusório e transitório: tudo isso vem de uma fonte profunda e inesgotável.”

Em outras palavras, isso é o que é realizado no momento da iluminação. Liberar-se da identificação com o EU, com memórias e hábitos. É uma virada. A pessoa corta um fio e todo o resto desaba.  Agarrar-se em nada por somente um segundo… a pessoa vê de dentro do próprio ato de ver. Ver agora de dentro do ato de ver. Obscuridade penetrando obscuridade agora e então... dá-se uma liberação.

E então, Nisargadatta fala do estado de “deslumbramento face à infinitude do ser”. A pessoa volta e torna a voltar a esse deslumbramento do ser. Ele toma a pessoa toda. Mas, as pessoas negligenciam esse estado de deslumbramento. Tudo, tudo pode ser negligenciado, visto como coisa sem importância. Até mesmo fezes secas. Fezes secas são algo maravilhoso.

Tem um koan onde alguém pergunta a Humon: “O que é Buda?” E ele responde: “Fezes secas.”  A princípio parece que Humon está blasfemando. Mas, ao contrário. Ele não está humilhando Buda. Ele está mostrando que tudo e qualquer coisa pode ser causa de deslumbramento. Tudo é milagre.

As pessoas buscam milagres, adoram milagres e magia. Constatamos isso sobretudo dentro do movimento Nova Era. Essa coisa de canalização, etc. Essa necessidade da magia, do miraculoso. Talvez porque isso dê a eles – talvez de modo deturpado – uma noção do que significa SER. Há aquele momento de SER VERDADEIRO que aparece e desaparece. Isso é iluminação.

Nisargadatta diz: “A coragem absoluta que nasce da realização de que cada nível de consciência é ilusório e transitório.” Assim, corta-se definitivamente aquela ansiedade existencial que muitas pessoas sensíveis sentem. É bem verdade que muitas pessoas estão embotadas e mortas… Esse salto só é possível quando você abandona a identificação que você tem com as coisas transitórias. Com coisas que nascem e morrem.

Enquanto você disser: “Eu sou isso”, você se coloca no mundo das coisas transitórias. O mundo do tempo e espaço. O mundo do nascimento e morte. Voltar para casa é ver de dentro, é cortar essa identificação. É somente essa identificação que tem de ser cortada.

O único modo de fazer isso é que a pessoa se doe à prática de maneira estável e ininterrupta. Se sua prática for “Eu sou” ou  “Quem sou eu”, então você deve penetrar mais e mais profundo. Mais e mais sutil. Mas e mais discernimento. Mais e mais fino. Fino questionamento. O único modo pelo qual você verá a Verdade é estando dentro da Verdade. Isso significa: sendo a Verdade.



[1] Esse teisho é classificado pelo no. 598 (2 de 3), março 1998, no Centro Zen de Montreal, traduzido por Débora Bolsanello e revisado por Valéria Sattamini. 
[2] Georges Gurdjieff, nascido em  27 de dezembro de 1877, na fronteira entre a Rússia e a Turquia, falecido em 29 de outubro de 1949. Místico e pesquisador, estudou com diferentes mestres sufis.
[3]  Albert Low faz uma distinção entre to awaken from the dream (acordar do sonho) e to awaken to the dream (acordar para o fato de que é um sonho). N. do T.
[4]  Mu é um koan que significa literalmente “não”.
[5]  Koan é uma pergunta que o mestre dá ao praticante  e sobre a qual ele deve repousar sua prática da meditação.  `Quem sou eu` pode ser considerado um tipo de koan. 
[6]  Em inglês : ‘witch’, ‘wizard’ e ‘wise’.
[7] Zendo é a sala destinada à meditação.
[8] No Hinduísmo e particularmente no Jnana Yoga e Advaita Vedanta, neti-neti é uma expressão em sânscrito que significa “não é isso, não é isso”.  Essa prática se constitui de uma meditação analítica que leva a pessoa a compreender a natureza de Brahman compreendendo primeiramente o que não é Brahman. No ocidente, essa prática é conhecida como “Via Negativa”.
[9]  Kensho é um despertar momentâneo de maior ou menor intensidade. Kensho significa literalmente : `exergar sua propria natureza`. Dependendo do contexto, a palavra ken quer dizer : `ambos`, `perceber`. E a palavra sho significa : natureza, vazio, unidade, absoluto.  

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