Sobre a fé


TEISHO  2



O QUE É FÉ ?[1]

autor: Albert  Low

Gostaríamos de continuar lendo e comentando sobre Nisargadatta. Ele afirma: Para começar, confie em mim. Confie no professor. Isso leva você a dar o primeiro passo. E então, sua confiança será confirmada por sua própria experiência em cada momento da vida. Acredite em mim.

Quando alguém afirma esse tipo de coisa, a pessoa imediatamente olha para sua carteira de dinheiro para verificar se ainda está onde a deixou. Mas, queira ou não, essa confiança inicial é essencial. Possivelmente hoje em dia é mais difícil para nós confiarmos em alguém do que em qualquer outra época da história do homem. Tantas vezes a confiança foi dada e foi quebrada. Ainda assim, se a pessoa parte do sentimento “É... eu não acredito muito em nada disso, mas o que tenho a perder? Vou fazer uma tentativa e se não der, tentarei outra coisa.” Esse tipo de atitude é como conduzir um carro com os freios completamente acionados. É por isso que é muito bom que você examine esses primeiros passos em sua prática[2].  É por isso que sempre estamos questionando você: “Por que você medita?” Pergunte-se: “O que me traz aqui?”

Eu insisto: essa confiança não é uma crença cega, mas é uma abertura. Você confia em mim, você confia no professor. Desta forma, você esta depositando confiança em você mesmo, pois é essencialmente sobre você que nós estamos falando.

Nisargadatta diz: “Em cada momento da vida, a confiança é essencial. Sem ela, muito pouco pode ser feito. Cada empreendimento é um ato de fé.”  Às vezes, as pessoas dizem: “Tenho tão pouca fé. Tento meditar, mas tenho pouca fé.” Mas, sair da cama de manha já requer uma fé enorme. Até mesmo uma pessoa acuada tem uma grande fé, permanecendo imóvel, permanecendo imaculado de alguma forma.

Sua própria natureza é confiança, sua própria natureza é fé.  Tenha fé em si mesmo. O que estamos tentando fazer é evocar a fé original que você é. Como você sabe, o despertar é comumente chamado de despertar para a mente confiante. É sobre isso que os versos do Terceiro Patriarca[3] falam, sobre o despertar para a mente confiante. Essa mente confiante é a mente do comer e dormir, andar e falar. Nunca é demais sublinhar que sempre subestimamos isso. Gurdjieff[4] costumava falar sobre “atuar de maneira automática.” Ele estimulava seus discípulos  a ir além de sua maneira mecânica de viver. Viver mecanicamente equivale a subestimar tudo.

Nisargadatta diz: “Até mesmo o seu pão de cada dia você come com fé. Lembrando do que falei para você, você atingirá tudo.”  E ele reforça – e é essa a parte mais importante: “Você é a realidade transcendente que a tudo permeia.”

 É difícil demais aceitar isso. Estamos tão acostumados com a noção de ser um corpo, de ser algo insignificante, talvez próximo do fracasso, um ninguém em um mundo hostil sem afeto nem zelo, que quando alguém diz: “Acredite em mim. Você é a realidade que permeia tudo, a realidade transcendente” é pedir demais que alguém acredito nisso!

Mas, é assim. Veja bem: você não tem dúvidas de que o mundo é real. Você não tem dúvidas de que o corpo é real. E quando você reflete sobre eles, seus pensamentos também são reais. Sonhos são reais. Seus medos e ansiedades são reais. E alguém chega para você e diz: “Por que você não abandona essas ansiedades, são apenas ilusões!” Você reage: “Não, não, não, não! Não são ilusões. São reais!”

A morte é real. Mas, o que é essa realidade? Quando você afirma que o mundo é real, na verdade o que você está dizendo? Pergunte-se. Quando você diz que seus pensamentos são reais, que suas preocupações são reais, o que você está dizendo na verdade?

Sobre essa realidade, há uma qualidade que a permeia e que a transcende por completo. O próprio ser dessa realidade. É por isso que quando as pessoas dizem: “O mundo é um sonho”, outro alguém reage: “É real!” Como você sabe? Que provas você tem dessa realidade? Como você experimenta essa realidade? As pessoas dizem: “porque posso vê-la.” Então,  é o ato de ver que é real. A realidade é uma qualidade do ato de ver em si. “Eu sei que é real!” Então, a realidade é uma qualidade do saber em si. Em outras palavras, a realidade é a qualidade de base. Quando você pergunta: “Quando é que eu começo e a realidade termina?” Você não pode achar uma linha que divide esse dois: o eu e a realidade.

Às vezes, eu proponho o exercício do silêncio aos alunos e pergunto: onde você começa e o silêncio termina? Quando alguém realmente está atento, esse alguém compreende que não há separação, não há eu estou aqui e o silêncio está lá. Podemos dizer que é uma qualidade misturada. Mas, o silêncio é real? Claro que é real. É esse sentimento de imutabilidade. Quando Nisargadatta diz que você é a realidade que a tudo permeia e que a tudo transcende é a isso que  ele está se referindo, a esse “Eu sou”.

Um dos grandes erros que as pessoas cometem é acreditar que uma experiência espiritual  tem que ser, de alguma forma, uma experiência de êxtase. Constata-se isso nos cultos do tipo Nova Era. Há sempre uma sede de excitação, de entusiasmo, o sentimento de que para a experiência ser realmente espiritual, ela tem de ser intensa. Às vezes até extrapolam isso e acreditam que quanto mais intensa a experiência, mais profunda.

Sim, existem experiências espirituais extáticas, não há nenhuma dúvida sobre isso. Uma das experiências extáticas que uma pessoa pode ter é a experiência da luz. Do encontro da  luz. Como um sol, que é todo amor, que a tudo permeia, brilhante. Mas não brilhante de forma a cegar. É uma experiência das mais gloriosas. Supomos que essa seja a origem do culto do sol. Essa pessoa[5] está quase certa de que o antigo culto do sol, o culto da luz tem origem nessa experiência do sol interno. Como as pessoas não conseguiam reproduzir a intensidade da experiência desse sol interno, eles tomaram o sol externo como deidade. Até o samadhi tem um certo tipo de intensidade, muito embora o profundo samadhi seja neutro.  Mas a profunda experiência espiritual de voltar para casa não é extática. Não é um êxtase. Não é intensa. Uma intensa alegria pode acompanhá-la, mas essa intensa alegria é um subproduto e é superficial. Ela vem e vai embora. Mas, voltar para casa, para si mesmo é simplesmente voltar para casa, para si mesmo. Você volta para casa como sendo a única realidade.

Há um verso que citamos frequentemente: “A lua é ainda a mesma velha lua. As flores não estão diferentes. Agora eu vejo que eu sou o ser das coisas.”  Esse é um poema escrito por um monge que atingiu o satori, o despertar.

“Agora eu vejo que eu sou o ser das coisas.” Quando falamos da realidade que a tudo permeia, que a tudo transcende, falamos sobre o ser das coisas. É o mesmo que virar uma luva do lado avesso. Tudo é o mesmo, mas tudo é bem diferente. Afirma-se que “quando os pensamentos voltados para o mundo são fortes, os pensamentos do Dharma[6] são fracos. Quando os pensamentos voltados para o Dharma são fortes, os pensamentos voltados para o mundo são fracos.” Em outras palavras, quando uma pessoa está vivendo dentro do Dharma, quando a pessoa está vivendo  em si mesma, então o mundo é como se fosse feito de sonho. Mas, se a pessoa vê o mundo como real, então a pessoa é tal e qual um fantasma errando em torno das beiras do mundo.   

Quando perguntamos: “O que é Mu[7]?” ou “Quem sou eu”, você não está perguntando outra coisa.  Você não está buscando uma nova experiência.  A realidade que permeia a tudo e que transcende a tudo não pode ser experimentada. Ela é a base da experiência. O que pode ocorrer é que a pessoa perceba o ser como uma qualidade fora de si mesma. Fazemos isso quando nos projetamos fora de nós mesmos.

Isso é o que chamamos existir, quando uma pessoa percebe que ela é algo no mundo. É o que queremos dizer quando falamos da pessoa que se projeta fora de si mesma. A pessoa acredita, então, que precisa de coisas para sustentá-la.  Que alguns tipos de sucesso são importantes e certos tipos de atividades ou certos tipos de bens são necessários para mantê-la dentro da existência. Mas quando alguém vive esse tipo de vida, uma vida de dependências, esse alguém está simplesmente reagindo. Vemos isso no mundo dos negócios, quando vamos àquelas conferências sobre gestão[8], pode-se ver o quão esse tipo de vida é vazio.

T.S. Elliot escreveu este poema sobre o homem vazio, nós somos o espantalho. Pedaços vazios preenchidos com palha. Nesse tipo de vida, a pessoa está somente reagindo. Representando um papel. Comportando-se exclusivamente em função daquilo que é ditado pelas situações.

Uma das coisas que sempre nos chocou nessas conferências é a quantidade de álcool consumida.  Bebe-se grandes quantidades de álcool. A primeira coisa que se faz ao chegar ao hotel é pegar uma garrafa de whisky. Claro, a pessoa tem de preencher esse vazio com alguma coisa. E porque a pessoa é um homem vazio, um espantalho, então o mundo é real. E a morte é horrivelmente real. O que estamos fazendo quando praticamos é reclamar por nosso direito de nascença.

Mas, insisto, certamente você não está procurando por uma experiência arrebatadora. É sutil. É assim. Eu junto as mãos e a direita fica por cima da esquerda. Depois, as viro ao contrário e a mão esquerda fica por cima. É o mesmo, mas totalmente diferente.

As pessoas perguntam a Nisargadatta: “Qual a diferença entre você e eu?” Ele responde: “Não há diferença alguma. Mas eu sei que não há.” É assim. Não há diferença. Mas eu sei. Quando alguém ouve isso, emerge o sentimento: “Então, para quê? Por que toda essa luta?  Esses retiros de 7 dias? Essa meditação?” Se você está fazendo tudo isso por uma razão, pare! Você empreende essa luta porque não consegue evitar.  Como a mosca que fica esfregando suas patinhas, limpando-as. Isso é zazen. Essa necessidade de nos limparmos. Não conseguimos parar de nos limpar. Temos de fazê-lo! E a melhor coisa é fazê-lo! Então, para quê? Faça-o e ponto!

“Você é a realidade que a tudo permeia e a que tudo transcende. Comporte-se de acordo com isso. Pense, sinta e aja em harmonia com o todo e a atual experiência daquilo que estou dizendo descerá até você agora mesmo.”

Quando nós estamos meditando e quando você está se abrindo à pergunta “O que é Mu?”, “Quem sou eu?”, ou quando você está acompanhando sua própria respiração, nesse momento você não está mais buscando algo fora de si mesmo. Claro, quando começamos nesse caminho, sim, estamos buscando algo fora de nós.  Não podemos evitar isso, pois a pessoa não pode mudar de direção de repente. Mas, para aqueles que estiveram em sesshins[9] de 7 dias, já há um profundo despertar dessa mente confiante. Essa mente confiante é exatamente isso. É o despertar para a verdade de que o ser da pessoa é a realidade que a tudo permeia. É a mesma coisa: não é por causa da fé que a pessoa desperta. A fé é o próprio despertar. Nem mesmo o despertar: a fé é conhecer a verdade. E a pessoa se entrega para a verdade. A presença para a qual você está se entregando e que está emergindo em você já é o dote dessa verdade em você ou enquanto você. Você é essa realidade que a tudo permeia.

Tem de haver um certo tipo de massa crítica. E então, quando a massa crítica emerge, há – você pode chamar de explosão, ou de surpresa – esse irromper. Mas, o desenvolvimento da massa crítica é vital. E a profundidade do despertar dependerá da sinceridade com a qual a pessoa permitiu que essa massa crítica tenha se formado. Mas, temos de compreender que a prática em si tem o seu próprio valor.  Que sua vida está sendo transformada pelo fato de que você pratica.  Em outros termos, não existe um interruptor que temos de ligar e desligar.

Alguns pessoas questionam : “Meditei toda minha vida e como é que não chego ao despertar? Será que eu deixei passar?” Claro que não. A transformação que acontece não é uma transformação de uma soma, de um ganho, de obter algo que você não tinha antes. A transformação é de se ser cada vez mais apto a responder de acordo com a verdade daquilo que você é. E a transformação continua, muito embora não haja despertar.  A vida da pessoa se torna mais rica por causa da prática.

O problema é que frequentemente temos alguns critérios através dos quais julgamos se nossa prática tem sido eficaz ou não. Obviamente esses critérios em si mesmos são  bloqueios na transformação. É quase como um espasmo muscular. Embora o tônus muscular do organismo possa ser melhorado através de certos exercícios, ainda assim a melhora completa não é possível enquanto durar o espasmo muscular. Houve uma mudança, mas a pessoa não consegue realizá-la.  Frequentemente esses critérios são critérios impossíveis tipo: “ah, se eu fosse uma pessoa mais engajada, as pessoas gostariam mais de mim”, coisas desse tipo.

Quase sempre o fato das pessoas gostarem ou não de você não depende de você, mas de como elas passaram a noite...  Então, o que estamos tentando colocar aqui é: deixe de lado seus critérios, abandone seus julgamentos. Tenha fé. Confie naquilo que está sendo feito, naquilo que tem sido sugerido, no trabalho que você está fazendo dentro de uma tradição que é tão antiga quanto a humanidade. Essa tradição tem sido passada de modo vivo. Não há laboratórios. Essa pessoa[10] não fez nenhum experimento durante todo o tempo que vem ensinando. Durante todo o tempo que temos ensinado, não tentamos nenhuma nova ideia, nem nova meditação, nem mesmo nenhuma nova ideia de prática. Temos tentado trabalhar da maneira mais fiel possível dentro da tradição que nos foi transmitida. É verdade de que estamos trabalhando – e tem de ser assim – dentro da tradição através de nossa própria experiência. E nossa experiência confirma – pela profundidade que essa experiência atingiu – confirma a tradição em sua verdade e valor.

Quando você está meditando ou se entregando à prática que foi passada a você, você está trabalhando dentro de um rio, de um fluxo que inclui o trabalho de milhões de pessoas. E algumas das mentes mais refinadas que a humanidade concebeu contribuíram para esse rio. Em consequência, nossa prática deve ser também uma prática de agradecimento. Não viemos a um retiro somente para pegar, receber e cair fora. Nós também, por gratidão, queremos contribuir com esse rio de maneira que ele flua para as gerações futuras.  E quando nós praticamos com confiança, fé, gratidão e com o respeito que um tal presente merece, então, pensamentos do tipo “O que estou levando disso tudo?”, “Será que isso é bom para mim?”, “Será que sou um idiota?”, tudo isso derrete. Deve derreter.

Nisargadatta diz: “Comporte-se de acordo.  Pense, sinta e aja em harmonia com o todo e a atual experiência daquilo que estou dizendo descerá até você agora mesmo. Nenhum esforço é necessário.”  Esse é o paradoxo que há pouco apontamos. O não-esforço  vem dessa autodoação plena de fé. E às vezes, essa confiante doação de si próprio requer um esforço intenso. Requer esse desejo de prosseguir, essa determinação de continuar. Também significa permanecer aberto diante da dor, da ansiedade, do medo.

Ainda assim, permaneça confiante dentro dessas coisas. Esse é um esforço. O que Nisargadatta quer dizer com não-esforço é que não é você que faz as coisas acontecerem. Você não deve esforçar-se para que algo aconteça ou para solucionar algo nem para obter sucesso. Não é necessário esforço para se ter sucesso nesse tipo de coisa, nem para vencer. Esse tipo de esforço obstrui o caminho pois ele emerge da ambição. Na realidade, esse tipo de esforço vem da falta de respeito e da falta de confiança.

Nisargadatta diz: “Tenha fé e aja dentro dela. Por favor veja que não quero nada de você. É em nome de seu próprio interesse que eu falo, porque acima de qualquer coisa você se ama e deseja felicidade e segurança para você mesmo. Por favor veja que não quero nada de você.”

Algumas pessoas me perguntaram recentemente: “Por que você ensina ?” Eu ensino pela mesma razão que você pratica. Ensinar é minha prática espiritual. Acredite que não o faço por algum desejo de controle ou poder, fama ou outra coisa. Para mim, ter poder  sobre as pessoas é custoso demais, é problema demais.  E para quê? Mas, ser capaz de trabalhar com você e ver que as pessoas estão enxergando, penetrando as coisas, compreendendo, realizando e ter o privilégio de caminhar com as pessoas quando estão lutando com suas dores. Isso é a prática.  Isso é o que alguém retira da prática, se é que podemos dizer que se pode obter algo dela.

E então, Nisargadatta continua: “porque acima de qualquer coisa você se ama e deseja felicidade e segurança para você mesmo. Não se envergonhe disso. Não negue  isso.”  Alguém veio me dizer: “Umas pessoas dizem que sentem grande dificuldade na meditação. Mas, eu gosto de meditar. Será que eu estou certo?” Essa ideia de que temos de negar a nós mesmos.  Essa ideia puritana.

A América do Norte foi fundada pelos puritanos, pessoas sem alegria. Eles achavam que quanto mais tristes eram, mais próximos estariam de Deus. E claro, muitos desses puritanos vieram para o Canadá. A coisa é que buscar a própria felicidade e amar a si próprio são as bases de ser capaz de amar os outros e buscar a felicidade dos outros. Se uma pessoa se detesta, se ela se despreza, se acha que é a encarnação do mal, como pode amar outra pessoa? A experiência que tenho é que esse amor não é somente o amor por alguém, mas esse amor não está excluído disso.  Não há sentido em: “Não devo ceder aos desejos”, que é quase sempre o caso das pessoas que seguem os ensinamentos da igreja. Essa negação de si próprio acontece porque a pessoa acredita que o mal existe e que há algo fundamentalmente errado.

Sempre fomos reticentes em usar a palavra ego para descrever o comportamento das pessoas porque essa palavra já é em si pejorativa. Ela já é um julgamento, já aponta para algo ruim. A coisa é que se nós olhamos para algo ruim, essa coisa tem de ser erradicada de nós. Há uma separação, já há uma cisão. Mas, se podemos reconhecer que sujeira é  matéria no lugar errado, então não há mal em nós. Há uma desarrumação. Nós colocamos as coisas nos locais inapropriados ou julgamos erroneamente uma situação. A questão é: como podemos ver isso e como podemos compreender corretamente? Só então nossa atitude em relação ao mundo é uma atitude criativa, positiva. É uma atitude através da qual estamos tentando unificar e redescobrir uma nova totalidade ao invés de tentar eliminar, se livrar, superar ou suprimir.

Às vezes dizemos que aquilo que chamamos de “eu sou algo” é como um botão de uma flor. Se o botão permanece um botão, obviamente há algo errado. É preciso que o botão se rompa em flor.  Mas isso não pode ocorrer a não ser que a flor tenha passado pelo estágio de botão. Da mesma forma, é necessário que nós acreditemos que somos algo, que nós temos – usando o termo em seu sentido correto – a estrutura do ego.

Como vocês sabem, às vezes dizemos a algumas pessoas: “É melhor você passar um tempo no psicólogo” ao mesmo tempo que elas vêm praticar, pois a psicologia é um estudo pelo qual a estrutura do ego pode ser trabalhada de modo que os conflitos internos da própria estrutura possam ser reduzidos. Desta maneira há um senso de segurança muito maior quando sentimos que somos alguém no mundo. Mas, em seguida, temos de ultrapassar isso. Então, damos o próximo passo e permitimos acontecer essa realização, esse desabrochar. É por isso que pedimos a você para não aceitar nem adotar os ensinamentos budistas.  Principalmente, não aceite a ideia: “Eu não sou nada.” Não aceite isso. Não diga para si mesmo: “É, ele já falou bastante sobre isso. Falou até demais, então eu devo acreditar. Eu devo incorporar isso na minha vida.”

Pois o que se estará fazendo é adicionar uma crença sobre a outra. Não ! Fique com o que você acredita. Fique com o que você vê dentro de si. Fique com sua realidade. E a partir disso, escute o que está sendo dito. E se o que está sendo dito entra em conflito com o que você acredita, fique contente. Sempre fique contente quando alguém discorda de você porque essa é uma oportunidade para achar algo além daquilo em que você já acredita piamente. Se você pode aceitar outro ponto de vista, mesmo que você perceba adiante que ele está errado, ao menos o esforço que você fez para incluir esse desafio faz emergir em você uma energia criativa. A criatividade que está em você. A criatividade que é você. Por isso, há um aumento da vida em você. Esse aumento da vida quase sempre traz um aumento em compreensão, apreciação e sensibilidade.

Então, tudo o que é dito pelos ensinamentos budistas deve ser visto como um desafio. Você deve tomá-lo como um desafio. Não deve se restringir a: `É interessante` e deixar pra lá.  Se lhe toca, então você deve trabalhar com aquilo que é dito. E observe quando algo não se encaixa, por exemplo, uma contradição: “Há algo que precisa ser feito. E às vezes requer suor, lágrima e sangue.”

Há uma contradição nisso. Não funciona. “O que ele quer dizer? O que entendo disso? Como isso afeta minha meditação? Será que estou apenas seguindo cegamente, fazendo esforços demasiados, ignorando o outro lado da medalha que diz que nada precisa ser feito? Ou será que estou adotando o tipo de atitude: visto que nada precisa ser feito, me permito horas de cochilo enquanto deveria estar trabalhando?”

Você deve ver esses desafios constantemente, essas coisas que  não se encaixam, que não funcionam. E então, deve ultrapassá-las. Mas nunca deve dizer: “O professor não sabe o que esta falando!” Talvez ele não saiba. Mas, se você trabalhar com o que está sendo dito, será uma alavanca. Você estará se alavancando para fora dessa obscuridade, dessa apatia, dessa cegueira na qual você vive.

Nisargadatta diz: “Não tenha vergonha. Não negue a si mesmo. É natural e bom amar a si próprio. Mas, você deve saber exatamente o que ama.”  Você não ama o corpo. Então o que é? Sinta esse amor por si mesmo. Essa satisfação. Isso já é amor, unificação, não-conflito, não-separação. E se alguém se permite isso, a pessoa vê que essa totalidade está sempre presente. Ela é uma condição do seu ser. Mas, costumamos negligenciar isso. “Ah, todo mundo tem essa totalidade!”  Então, não há nada de extraordinário nisso. Mas se você quer algo extraordinário, algo fora de série, algo que te elevará acima dos mortais, então, é certo que você vai negligenciar o tesouro escondido que você tem dentro de você.

“Você deve saber exatamente o que você ama.” Não é o corpo que você ama. É a vida. Perceber, sentir, pensar, agir, amar, lutar, criar. É essa vida que você ama, a vida que está em você e que é tudo. Mais uma vez, quando falamos dessa realidade que a tudo permeia, essa unidade que a tudo permeia, se nos permitirmos, isso pode ser visto como amor. Amor é unidade. Amor é não-oposição, não-separação. Na festa de Natal vemos quando uma criança ganha um presente. O que ela faz?  Ela abraça o presente, se torna um com o presente, fisicamente. Quando duas pessoas se encontram no aeroporto, elas se veem uma a outra, se abraçam, se unem. Com isso surge um sorriso, o sorriso na criança e nas pessoas que se abraçam. Esse sorriso é apenas uma manifestação real dessa unidade iluminadora. Essa unidade é amor. Quando as pessoas estão apaixonadas, o rosto delas se ilumina e elas sorriem.

Nisargadatta diz: “Você ama a vida, a vida que é você e que é tudo.”  Realize isso totalmente além de toda e qualquer divisão e limitação. E todos seus desejos se reunirão pois o maior contém o menor. Por isso, encontre-se a si mesmo, pois encontrar-se é encontrar tudo. Você vê que você é amor.

O despertar é despertar para aquilo que você é.  Já está aí em toda sua completude. E quando dizemos em toda sua completude, isso não significa intensidade.  Se você está buscando experiências intensas, você vai negligenciar tudo que eu disse. Ou se você está buscando uma experiência única e especial que nunca ninguém teve, nesse caso você também perde. Você se perde de vista.

Alguém me disse que se iluminar é como beber um copo de água fria e conhecer o seu  sabor por si mesmo. Se você está vivendo na esperança de beber uma super Coca-Cola, um copo de água não significará nada para você. Mas, se sua sede é genuína, nada vale mais do que um copo d’água.

Nisargadatta afirma: “Todo mundo está contente em ser. Mas, poucos conhecem a totalidade do ser.  Você pode chegar a conhecer, deixando sua mente habitar no Eu sou.  Ou no Quem sou eu? ou Como sei que eu sou?. Você entra cada vez mais no universo do Eu sou. Simplesmente Eu sou. Nada além de Eu sou. Esse Eu sou é a completude do ser. Esse Eu sou é a base onde tudo mais pode ser experimentado.

Nisargadatta diz: “Você pode chegar a conhecer, deixando sua mente habitar no Eu sou. Eu conheço. Eu amo. E com o desejo de alcançar o significado profundo dessas palavras.”


[1] Teisho classificado como 727-2of7-oct2000-reading from Nisargadatta pelo Centre Zen de Montréal, traduzido por Débora Bolsanello e revisado por Valéria Sattamini.
[2]                                  Quando Albert Low fala de prática, ele está se referindo à prática espiritual, mais precisamente à prática da meditação.
[3]          O Terceiro Patriarca é Seng T'san. O poema sobre a mente confiante pode ser lido na integra em inglês através desse link: 
[4]          Georges Gurdjieff, nascido em  27 de dezembro de 1877, na fronteira entre a Russia e a Turquia, falecido em 29 de outubro de 1949 Místico e pesquisador, estudou com diferentes mestres sufis.
[5]          Albert Low refere-se a si mesmo pela expressão essa pessoa.
[6]          Dharma é uma palavra do sânscrito que tem diversos significados. Nesse contexto pode ser traduzido como Lei ou Caminho.
[7]          Mu é um dos koans através dos quais o meditante trabalha.
[8]          Albert Low trabalhava como homem de negócios em uma grande empresa em Montréal, Canadá.
[9]    Uma sesshin é um retiros onde há, dentre outras atividades, a prática intensiva da meditação.
[10]  Albert Low refere-se a si através da expressão essa pessoa.


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