Teisho 11
NÃO SAIA DA GAIOLA DO TIGRE [1]
Autor : Albert Low
Durante o decorrer dessa
semana, em vários cantos do mundo, diferentes centros budistas, institutos,
templos e mosteiros se comprometeram a meditar ou a rezar pela paz. Eu recebi
um email de uma das lideranças, a pessoa responsável de um centro budista que
está à frente da organização dessa semana. Ela perguntou se nosso centro uniria
suas forças a essas meditações e preces.
Quando alguém pede a você
para rezar pela paz, é um pouco difícil recusar. Eu respondi, então,que nós
dedicaríamos o presente sesshin a essa paz. Nós não devemos colocar em dúvida
que uma meditação em conjunto como essa traz profundos benefícios. A prece e a
meditação têm poderes além do que nossa mente consciente pode conceber. Essa
pessoa[2]
raramente fala do poder da prece porque é muito fácil as pessoas se tornarem
sentimentais a respeito da prece. E você sabe o que eu quero dizer por
sentimental. Eu quero dizer curtir uma
emoção sem pagar o preço por ela.
Mas, mesmo aceitando, nós
ainda ficamos um pouco relutantes a nos juntarmos a essa prece pela paz. Nosso
zazen já é isso. Exclusivamente isso. Adicionar ao zazen palavras, emoções ou
sentimentos simplesmnte bloqueia, distorce e talvez destrói o seu poder.
Especialmente em uma prece pela paz.
Nós só poderemos ter paz
na Terra quando nós tivermos paz em nossos corações.
Há essa famosa imagem do
mestre olhando uma briga de galos. Essa imagem se origina de um mondo[3]
onde um monge e seu mestre estão assistindo uma briga de galos e o monge
pergunta : Por que eles fazem
isso ? E o mestre replica : Por
causa de você[4].
Se você está se
perguntando por que eles fazem o que fazem no Timor, Iuguslávia, Irlanda ou
Oriente Médio. É por causa de você.
Você afirma : Quanta culpa é gerada por tudo que está
acontecendo lá.
Mas nós não estamos
falando de culpa. Se você reza pela paz, esteja pronto para pagar o preço. O
preço é saber como sofrer. Nossa prática é essa.
Nossa prática é uma
ardente, profunda e inesgotável prece pela paz.
E com nossa prática
pagamos o preço de ter o privilégio de rezar dessa maneira. Isso nos leva
direto ao assunto que quero abordar nesse teisho.
Na coletânea de koans que conhecemos sob o nome de Hekiganroku,
há um koan sobre um homem chamado Layman Pang (layman pois ele era leigo e não monge), que dá
uma palestra sobre o Sutra do Diamante. O Imperador e os nobres foram
convidados para ouvir essa palestra. E quando todos estão prontos, Lemon
Pang vai até o palestrante, dá uma paulada nele e foge.
Palavras não podem
definí-lo, mas o que mais temos nós exceto palavras ?
Nansei diz :
A mente comum é o caminho.
Não existe uma mente
especial ou um estado especial para se práticar zazen.
Nisargadatta diz : Volte ao estado de puro ser, onde EU SOU
ainda está puro, sem ter sido contaminado com EU SOU ISSO ou EU SOU AQUILO.
Em outras palavras,
enxergue dentro do EU SOU antes que ele se torne EU SOU ALGO. Nessa pequena
frase está nossa prática. E nessa curta frase está todas as armadilhas, o
desfiladeiro, a direção errada que a pessoa pode tomar.
Santo Agostinho disse uma
vez : Para me compreender, você tem
de acreditar em mim.
Normalmente, nós
funcionamos ao contrário. Quando eu entender você, talvez eu acreditarei no que
você está dizendo. Deixe-me entender primeiro e minha crença virá mais tarde.
Então, quando você ouve a
frase : Volte ao estado de puro ser,
onde EU SOU ainda está puro, sem ter sido contaminado com EU SOU ISSO ou EU SOU
AQUILO, você diz para si mesmo : Deixe-me entender isso, deixe-me ver
bem o quê você está dizendo. Deixe-me
pensar primeiro e então, talvez eu irei aceitar. Talvez eu me sentirei
confortável com o que é dito. Talvez eu adote o que é dito.
Todos sabem que nós
organizamos oficinas aqui no centro zen. As pessoas pensam que vindo a uma
oficina, vão obter informações que elas poderão digerir. Não é raro que você as veja com canetas e
bloquinhos para tomar notas. Mas elas não conseguem achar nada a ser escrito. Talvez
uma ou outra definição e nota-se que eles a escrevem com vontade, com certa
ânsia. Por exemplo, Duhka significa
sofrimento.
O que isso
significa : Volte aquele estado de
puro ser ? Você acha que exsitem dois estados. Há o estado de ser puro
e no lapso do tempo, aquele ser puro se envolve com coisas. Nisagardatta
diz : Volte ao estado de puro ser,
onde EU SOU ainda está puro, sem ter sido contaminado com EU SOU ISSO ou EU SOU
AQUILO.
Então, você acredita que
esse ser puro existe e que quando você está trabalhando na pergunta QUEM SOU
EU ? , você está perguntando o que é esse ser puro. A pessoa pode passar
um retiro de sete dias nisso.
Nós dizemos : Antes que o pensamento EU SOU emerja, o que
é você ?
Claro, o problema é a
palavra antes.
Porque pensamos que antes
significa antes em termos de tempo.
Uma pessoa diz : Eu estou confusa.
Não. Nesse momento, eu sou
confusão. Eu digo : eu sou um homem.
Mas quando eu digo eu sou um homem, implicitamente nisso está eu não sou um homem. Eu sou eu. Eu
sou puro ser. Volte ao estado anterior ao EU SOU ALGO significa antes daquele
implícito EU SOU ALGO além de um homem.
É por isso que dizemos que
essa frase contém toda nossa prática : MU ou QUEM ? O QUE É ?
Além de ser algo.
Mas, alguém
contesta : Mas, você acabou de dizer
EU SOU UM HOMEM E SÓ ISSO ! Ou EU SOU CONFUSO e só isso !
Nesse EU SOU CONFUSO ou EU
SOU CONFUSÃO não há um EU separado nem acima nem abaixo da confusão. Por isso é
que somos livres. A confusão se transforma em tédio. Tédio se transforma em
esperança. Esperança se transforma em ressentimento. E assim surfamos outro
período de meditação.
A coisa está nessa busca,
nesse hiato, nessa lacuna, nessa rachadura, nessa abertura entre EU SOU e
CONFUSÃO. Esse é o problema. Há uma lacuna entre os dois. É a lacuna que é a
impureza.
Você vê a mesa. Você não
pode dizer que a madeira é a mesa. Madeira é madeira. Mesa é mesa. E ainda
assim, a madeira é a mesa. Vazio é forma. Saber é ser. Eu sou um homem. Mas
ainda assim : saber é saber. Ser é ser. Madeira é madeira. Mesa é mesa. Eu
sou é eu sou. Homem é homem.
Nisagardatta diz : O que pesa para você são suas falsas identificações.
Abandone todas elas. Meu mestre me disse : Confie em mim quando eu digo
para você : você é divino. Tome isso como sendo verdade absoluta. Sua
alegria é divina. Seu sofrimento é divino. Tudo vem de Deus, lembre-se sempre
disso. Você é Deus.
Sua alegria é divina. Seu
sofrimento é divino. Quantas divindades existem ? Quantos deuses
existem ? Quantos EU SOU existem ?
Se você responder que há
somente UM, então como você pode dizer que sua alegria é divina ? Como
você pode dizer EU SOU UM HOMEM ? Ou EU SOU CONFUSO ? EU ESTOU SAINDO ? EU ESTOU BEBENDO UM
CHÁ ? Quantos EU SOU existem ? Se você disser que há um EU SOU para
cada situação, você está dizendo, como os antigos, que há um Deus para a
alegria e um Deus diferente para a tristeza. Então como você pode chamar de
Deus ? Como você pode dizer EU SOU ?
Mas, se não é UM e não é
MUITOS, então, o que é ?
É por isso que eu digo que
acreditar que existe um ser puro, que você é Deus à parte da situação na qual
você se encontra significa que você criou uma dualidade. Mas o que Nisargadatta
diz é : O problema reside na suas
falsas identificações, na crença de que EU SOU um homem, EU SOU feliz ou EU SOU
confuso.
Nós não estamos dizendo o
mesmo que alguns professores zen budistas dizem : EU SOU É IGUAL A NADA.
Isso é absurdo. Posso dizer EU SOU NADA
da mesma maneira com a qual eu digo EU SOU ALGO. O importante é não achar que a gente sabe do
que esta falando.
Você está
vendo a confusão ?
Você deve estar
pensando : Ihhh, ele está falando de
tanta coisa complexa hoje… que bicho o mordeu ?!
Mas não é isso. É porque
você se apega às palavras EU SOU, que você pensa que EU SOU é algo. Mas, esse
EU SOU ALGO é um não-algo, uma pureza, um Deus, uma divindade. Em um certo
nível, o mestre de Nisagardata falou uma coisa maravilhosa : Confie em mim quando eu digo para
você : você é divino. Tome isso como sendo verdade absoluta. Sua alegria é
divina. Seu sofrimento é divino. Tudo vem de Deus, lembre-se sempre disso. Você
é Deus.
Mas, isso é loucura !
Mas, o quê faz dessa verdade uma loucura ? Você diz : eu sou um homem, eu sou uma mulher. Isso
é que é loucura ! E o que faz dessa loucura uma verdade ? É isso que você deve investigar.
Cuidado para não
pensar : Eu sei o que essas palavras
significam. Ao invés disso, pense : Eu trabalharei com essas palavras como se fossem ferramentas.
Você deve escorregar das
palavras em direção aos braços da verdade.
Você é divino. EU SOU é EU
SOU.
É como luz e cor. Se você pensa que luz é a cor verde, então o
que é a cor vermelha ? Mas, se você acha que luz não é a cor verde, então
de onde a cor verde tira sua `verdeza` ?
A pergunta é QUEM SOU
EU ? Às vezes, perguntamos às pessoas : VOCÊ É ? E elas não
conseguem responder. Que estranho… Não é estranho que se possa haver dúvida
sobre isso ?
Mas, olhe bem, estou
avisando… Se, no próximo dokusan[5],
eu perguntar a você : VOCÊ É ?
Não se atreva a responder que
sim.
Nisargadatta diz : Somente seu desejo é realizado. Você é Deus.
Como vocês sabem, no
Centro Zen há membros que são cristãos.
E nós trabalhamos com os cristãos dentro de um contexto cristão. Pedimos às pessoas não violarem suas
consciências impondo o Budismo dentro de um contexto cristão. A pessoa deve ter
cuidado para não trair sua própria essência. Mas isso também não significa que
se você é cristão não possa praticar o budismo.
Quando cristãos vêm até
mim, eles recebem um koan : Seja
feita Vossa vontade.
Como podemos resolver a
aparente contradição entre essas duas afirmações ?
Nos escritos de Suzuki,
ele às vezes fala de dois poderes : Poder do Self e Poder do Outro. Esse é
um tipo de classificação que existe no Japão para distinguir diferentes
abordagens religiosas.
O Cristianismo e o Budismo
Pura Terra são do tipo Poder do Outro. O poder vem de Deus, vem de fora.
Devemos obedecer à vontade de Deus ou do mestre.
E há o Poder do Self, que
é o caso do Zen Budismo. Meu ser é vontade.
Mas, esses são apenas
modos de falar. Não há Poder do Self. Não existe Poder do Outro. Não há Deus.
Não há Self. Como podemos transpor essas barreiras ? Sobretudo a barreira
contida na pergunta QUEM SOU EU ?
Como penetramos na parede de aço expressa por essas questões ?
A mente comum é o caminho.
Estamos face a contradições impossíveis. Dou um exemplo : Eu sou um homem.
Eu não sou um homem. É verdade que sou um homem. Não é verdade que sou um
homem. É verdade que não sou um homem.
Não é verdade que não sou um homem. Afirmar que sou ambos é apenas uma
compensação. Afirmar que não sou nem um nem outro é a negação de um fato.
É o mesmo com Deus. É o
mesmo com o mundo. Com a felicidade e com a iluminação. Dizer que ALGO É é
simultaneamente verdadeiro e falso. Você não poder dizer que ALGO É ambas
coisas. Mas você também não pode dizer que ALGO NÃO É NENHUM DOS DOIS.
Para onde quer que você
olhe, você está face a face com a barreira da contradição. E você também é essa
contradição. E você também é o que você
não é.
Quando você vem práticar o
zen, é necessário primeiramente que você descortine essas contradições, abra a
porta para a confusão e permita-se entrar na casa do sofrimento. A única
maneira de sair disso tudo é passar através de tudo isso. E esse caminho é o
caminho de uma vida toda. A vida é purgatório.
Achar que meditando você
sairá do sofrimento e entrará em uma terra pura é sentimentalismo. As pessoas às vezes perguntam : Então para quê meditar ?! E eu
respondo : Se você não pode meditar,
não medite. Deixe pra lá. Se você não está na gaiola do tigre, não tente
entrar. Mas se você estiver na gaiola do tigre, não tente sair.
Para onde quer que nós
olhemos, há contradição. Isso é o que está acontecendo no Timor, na Irlanda, na
Iuguslávia. Isso é o que ocorreu no Oriente e na Europa de 1939 a 1945[6]. Para onde quer que você olhe, há sofrimento.
Buda disse : A vida é
sofrimento.
Em outras palavras, a vida
é contradição. A vida é e não-é ao mesmo tempo. Mas, também não podemos dizer
que a vida é ambos.
E ainda assim, a mente
comum é o caminho. Até mesmo para levantar a mão, você já teve de transpor
contradições.
A vida é impossível e
ainda assim você anda e fala.
Enquanto você está
procurando por uma saída, o olhar já é a saída.
Enquanto você está buscando por
um ser puro antes de ser alguma coisa, o procurar já é o ser puro.
Um monge pergunta ao
mestre : O que é o budismo ?
O mestre : Eu responderei à sua pergunta no dia em que você
conseguir tirar um homem de um poço muito fundo sem usar uma corda.
Como pode ser isso ?
Como se pode tirar uma pessoa de um poço fundo sem a ajuda de uma corda ?
O monge, cujo nome era
Iso, refletiu sobre essa proposição durante muito tempo. Finalmente voltou ao
mestre e colocou para ele a pergunta : Como
eu posso tirar um homem de um poço muito fundo sem usar uma corda ?
O mestre disse : Iso !
E o monge respondeu :
Sim !
O mestre conclui : Aí
está, ele saiu.
Não importa se o monge
tivesse dito sim ou não. Ou se ele tivesse dito Deus ou Self. Ou ser ou
não-ser.
Outro monge perguntou a
outro mestre : Qual a entrada para o
caminho ?
O mestre o levou para fora
do templo e perguntou : Você está
escutando esse riacho ?
O monge disse que sim.
O mestre então
conclui : Essa é a entrada para o
caminho.
Mas até mesmo o ato de
sair do templo já é o caminho. Até mesmo o fato dele ter colocado a pergunta a
seu mestre. Até mesmo quando ele pensou sobre a pergunta, ele já estava dentro
do caminho.
Agora você vê por que é
dito : Antes que o pensamento EU SOU
emerja, o que é você ?
Não queremos dizer que
você tenha de voltar no tempo. O pensamento EU SOU já é anterior ao pensamento
EU SOU. O que isso significa ?
Nós dizemos : Você
deve acreditar em mim e então você me compreenderá. Você deve acreditar que
você é puro ser. Você é saber não-refletido. Uma luz que brilha por si própria.
Você deve abandonar-se a isso. Sem reservas. Sem hesitações. Sem exigências.
Inocentemente.
Você é puro ser. E então
você verá por quê é terrível se dizer que você é puro ser. É um tremendo
atraso. E sobretudo, um professor te dizer, é como se ele estivesse te cobrindo
de poeira.
De um lado, você já sabe
como se colocar essas questões. Você sabe andar, falar, sentar, ficar de pé.
Você sabe como perguntar. Mas de outro lado, o problema está no fato de você
pensar que você sabe perguntar. É uma escorregada que você dá. É nessa escorregada que está o problema.
Deixe-me repetir :
você não tem de usar nenhuma mente especial para praticar zazen. A mente comum
é o caminho. Mas, se você passar a próxima hora tentando entender o sentido
desse teisho, é como se eu tivesse colocado veneno nos seus ouvidos.
Você sabe sobre o que eu
estive falando. Então, o que é esse conhecer ?
[1] Teisho
classificado pelo Centre Zen de Montréal por 671-1de7-Oct.1999-Nisargadatta,
traduzido por Débora Bolsanello e revisado por Alexandre Cursino.
[3] Mondo é uma
sessão grupal de
perguntas e respostas entre os discípulos e o mestre, muitas vezes
realizada durante um retiro.
[4] Em português, a formulação mais adequada seria
« É por sua causa ». Porém, o que está em jogo é o termo YOU,
VOCÊ. Estamos conscientes de que a
expressão É POR CAUSA DE VOCÊ não denota um bom uso da língua portuguesa, mas nossa intenção
nessa tradução é dar destaque à palavra VOCÊ,
que será retomada pelo
autor mais adiante .
[5] Dokusan é uma
entrevista individual do discipulo com o mestre.
[6] Albert Low
viveu na Europa durante a Segunda Guerra Mundial.
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